2 de setembro de 2016

Topografias. AAVV (Piqui)

Se há pouco mencionámos, de passagem, a discussão desencadeada pela ausência de mais nomes femininos da antologia de banda desenhada contemporânea brasileira, eis uma publicação, já deste ano, que demonstra a capacidade organizativa de um colectivo feminino. É verdade que se se tratasse de uma publicação em que todos os autores fossem homens, à partida tratar-se-ia desse título tão-somente como tal, e não pautado por quaisquer características que se soltassem do seu sexo (a menos que mergulhassem de forma directa e sublinhada dessa mesma circunstância). O mesmo não ocorre de forma gratuita ou forçada com publicações “de mulheres”, mas a verdade é que aqueles títulos caracterizados por essa circunstância as mais das vezes demonstram elementos que se revelam claros nas suas intenções de identidade sexual, política e de diferenciação contra uma certa visão hegemónica e normativa. Se nos recordarmos de algumas experiências portuguesas, desde Weavers of Speech a Rata, encontraremos experiências análogas em que a oportunidade de publicar em ensemble leva a que se sublinhem essas tais características, mas sem jamais as arvorar de forma reificadora ou absoluta. Haverá outros momentos de junção de autoras de banda desenhada, mas onde essas características não ganham essa proeminência, como é o caso de Allgirlz ou QDCA, o que bem ao contrário de um problema é uma conquista. (Mais) 

Uma vez que já debatemos em ocasiões anteriores o que é que se deve entender por “feminino” nestes contextos, que nada tem a ver com uma identificação primária e epidérmica, mas política, assinalemos somente que Topografias se inscreve nesse tipo de publicações em que se assume uma posição combativa e integrada, mas sem quaisquer tipos de programatividade, manifesto ou sequer um discurso explícito. Dito isto, a possibilidade de compreender o seu contexto de produção, desde o selo da Piqui ao Encontro do Lady's Comic de Belo Horizonte, etc., seria possível destacar esses princípios de modo mais concreto e palpável.

O que queremos dizer é que é através das próprias obras que se espera que a obra de abertura temática seja cumprida. As seis histórias, todas com menos de 10 páginas, aqui reunidas, são bem distintas entre si em termos visuais, estruturais e de conteúdo narrativo. O próprio título e a capa aponta para a possibilidade plural de encontrar vários tipos de terreno, que mesmo sendo adjacentes, podem apresentar traços bem diversos e até contraditórios entre si. Todas as histórias têm em comum o facto de apresentarem protagonistas femininas. Em muitas delas, as confusas emoções do amor, da sexualidade, o ciúme e a melancolia que advém da dolorosa construção da identidade está mais do que patente. Em alguns casos, embrulhadas na fase da adolescência das personagens, noutros casos transfigurada numa ideia mítica de desenvolvimento dos povos, noutras ainda transmutada num contexto de fantasia, em que essas características ganham um outro tipo de ímpeto.

A primeira história é “Chuva de Verão”, de Julia Balthazar, uma história que, não fosse apenas uma cena de transição fantástica, poderia ser vista como um conto da trivialidade de uma conversa de duas amigas sobre a vida em geral e nada em particular. Segue-se “Frumello”, de Bárbara Malagoli, uma espécie de poema-épico-de-ficção-científica em que uma conquistadora sideral parece querer demonstrar o seu poder, mas o texto apresenta-nos antes uma frase longa, introspectiva, numa espécie de melancólica bonomia. “Teneusca”, de Taís Koshino, recorda, de alguma forma, o conto All Summer in a Day, de Bradbury, uma vez que a personagem-criança deste conto numa hipotética sociedade futura(ista) e alienígena perscruta através de um Museu da Memória do Futuro os preços difíceis que se têm de pagar para se poder assumir (se se conseguir aceder a eles) os papéis que se desejam para a nossa identidade. “Flagelo”, da autora Paula Almeida, que assina como Puiupo, arrasa com a noção de reprodução e maternidade através de um convoluto mas curto conto de ficção científica. Mariana Paraízo apresenta 5 páginas de um turbilhão feito de colagens de recortes de revistas e jornais, “Sátira latina”, apenas numa primeira abordagem parece não ser uma narrativa linear ou até coesa. Não deixando de não o ser, na verdade, há uma clara possibilidade de criarmos uma complexa rede de referências e associações que contribuem para uma ideia e intriga, um pouco à la Humument: no centro um naufrágio, no âmago, um trauma. Finalmente, a autora lovelove6, particularmente activa e militante no Brasil nesta frente, apresenta, com “Árvores”, uma espécie de pequeno mito sobre as declarações de amor e ciúme.

Toda a publicação é impressa a duas cores, azuis (ou ciano; aqui pálido, ali eléctrico, agora sólido) e rosa (ou magenta; também em várias densidades), levando a efeitos de cruzamento bem diversos, mas em que nenhuma uma delas assume um papel menos importante. Algumas autoras têm um desenho sólido e estilizado, mas marcado pela abordagem manuscrita e gestual – os casos de Malagoli, lovelove6 e Puiupo) –, enquanto Koshino apresenta um desenho de linhas nervosas e naïfs, com uma composição densa e Balthazar inscreve-se naquela prestação moderna de manipulação de formas geométricas streamlined mas para criar aparentes estruturas orgânicas (aparentado a Deforge ou Baeza).

De uma forma simples, mas sólida e directa, estas autoras demonstram como é possível fazer valer certos princípios de integração temática e política, sem a necessidade de escolher discursos explícitos. E é com estas ficções, ora mais narrativas ora mais líricas ora mais elípticas, que conseguem lançar uma semente de possibilidades expressivas de maturar esses mesmos temas.

Nota final: agradecimentos ao colectivo, pela oferta da publicação, e M.F., pelo pombo-correio. As imagens foram todas colhidas da internet.  

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