10 de outubro de 2016

imageria. Rogério de Campos (Veneta)

De todos os livros que têm sido publicados pela editora brasileira Veneta, e de forma alguma em detrimento do valor de todos os textos que têm surgido, sobretudo no que diz respeito a uma forte banda desenhada autoral atenta aos seus contornos formais e temáticos contemporâneos, este volume representa uma dimensão de extrema importância, que nos deixa particularmente entusiasmados. Sabemos que os últimos anos têm sido de um crescimento exponencial e magnífico para o aumento do conhecimento histórico e teórico desta disciplina artística, e temos notado como paulatina e seguramente esse mesmo conhecimento tem chegado a um público cada vez maior, inclusive os novos artistas e cultores dela, que até há recente se lançavam nela com apenas um conhecimento imediato da geração precedente e exemplos soltos da sua história. (Mais) 

Esse conhecimento pode ser feito de várias maneiras, sobressaindo aquelas duas mais significativas ou agregáveis em dois princípios distintos: o do discurso meta-textual e disciplinar da própria história ou o da antologia dos exemplos maiores. Ambos são importantes, até porque é necessário sempre o primeiro para, a um só tempo, criar o terreno sólido, ancorar, balizar e valorizar os gestos que permitem o segundo.

O sub-título deste livro, “o nascimento das histórias em quadrinhos”, recordará alguns leitores do livro de Thierry Smolderen. É precisamente esse elo temático que Rogério de Campos pretende deixar claro, não apenas pelos comentários auto-referentes e a pesquisa de que dá conta, mas pela própria maneira pela qual organiza esta antologia, ainda que, a nosso ver, tenha perdido a oportunidade de ter sublinhado no próprio nome a pluralidade desse nascimentos. Com efeito, o grande cerne e modelo deste projecto encontrar-se-á na leitura do Naissances de la bande dessinée, de Smolderen, de que falámos, o que é revelado de modo explícito. O âmago da tese de Smolderen era demonstrar como pensar a banda desenhada em termos históricos não se pode esgotar numa identificação de um ponto originário único e unívoco (por hipótese, a obra de Rodolphe Töpffer, ou a de William Hogarth, ou esta ou aquela gravura do século XVII, etc., e muito menos os cartoons narrativos da imprensa norte-americana de grande circulação no final do século XIX). Bem pelo contrário, é a compreensão de várias linhas de desenvolvimento temático, estrutural, estilísticos, social e tecnológico que vão convergindo em direcção a um campo simbólico, apenas identificável, e até nomeável, a posteriori, que deve pautar a possibilidade de, para citarmos mais uma vez uma famosa afirmação de Walter Benjamin, “olhar para o passado através do telescópio do presente”.

Para além de Smolderen, Rogério de Campos demonstra continuamente como o trabalho histórico a que se propõe é devedor à monumental obra escrita por David Kunzle, de certa forma o primeiro verdadeiro historiador da banda desenhada, de um ponto de vista estritamente disciplinar, isto é, ultrapassando os gestos, necessários mas limitados, do arquivismo anterior. Kunzle pretendia escrever uma trilogia dedicada à história da banda desenhada, tendo publicado The Early Comic strip: Narrative Strips and Picture Stories in the European Broadsheet from c. 1450 to 1825 em 1973 e The Nineteenth Century em 1990 (University of California Press). Mas por essa altura já começavam a surgir novos agentes, investigadores e gestos de livros que foram cobrindo de forma muito competente o século XX um pouco por todo o lado (e de que Comics Global History é apenas um exemplo). Em 2007, publicaria dois livros (um antológico, o outro teórico) dedicados a Töpffer, e em 2015, a Doré. Ainda hoje, pensamos não exagerar, se pode considerar esta dilogia como o primeiro gesto verdadeiramente pautado pela disciplina da história para com o campo da banda desenhada e dificilmente ultrapassado ainda hoje enquanto súmula e visão de conjunto. Campos, porém, vai além disso, e utiliza toda uma série de outras fontes e conhecimentos e esforços próprios para criar uma visão muito abrangente destas origens plurais, chegando mesmo aos gestos que o editor Peter Maresca tem para recuperar “tesouros esquecidos” dos primeiros anos do século XX.

Assim sendo, temos aqui uma antologia que reúne textos visuais que começam no século XV, com as origens da imprensa (portanto, segundo a associação que Kunzle fazia entre a cultura do impresso à banda desenhada), e indo até o início do século XX, às experiências visuais de um Feininger ou de um Peter Newell. O livro está organizado de forma cronológica, apresentando materiais com pequenas introduções individuais de tamanhos desiguais conforme a importância dada a essa mesma “entrada”, o que convida a ler o livro de forma consultável, isto é, sem a necessidade de uma leitura linear e completa, mas antes cíclica ou quando necessária.

Assim, Léonce Petit, Malatesta e Tad Morgan têm direito a parágrafos sucintos, mas Hogarth, Töpffer, Doré, Hokusai e McCay tem uma página ou mais. E há escolhas que recaem antes sobre o título de uma publicação (a Kikeriki ou a Simplicissimus), ou uma técnica ou tema (“o crime como espectáculo”, “homens-palito”, o regador regado, etc.). Quanto aos “textos visuais” em si, se há casos em que apenas uma imagem surge como ilustração do momento histórico, da técnica, do artista ou do tema, há casos em que há uma maior “generosidade” da entrada, como são os casos de Töpffer e Doré, claro, mas também o ciclo inteiro de Jacques Callot, um “progresso” de Hogarth, as histórias dos marialvas de Busch, muitos trabalhos de Georges de Maurier ou de Outcault, ou o “dossier” do regador regado que, se existem artigos sobre o tema, não conhecemos uma colecção compreensível (mas não exaustiva) do seu tratamento gráfico. Acresce a esta amostragem as quase sempre excelentes reproduções, grandes e legíveis, com uma excelente tradução em português, também quase sempre pela primeira vez.

Aliás, o domínio da língua portuguesa, graças a esta perspectiva particular, permite que o antologiador reponha alguma justiça de representação, aumentando o papel que, no desenvolvimento global desta então nova forma artística, desempenharam autores brasileiros ou estrangeiros no Brasil tais como Angelo Agostini, Pereira Netto, Gustavo Dall'Ara e até mesmo Bordallo Pinheiro.

Se dissemos acima que imageria tem uma natureza consultável, isso não significa que não possa ou não deva ser feita uma leitura linear do volume. As escolhas de design, sem obstrusões, de margens largas e procurando uma elegância simples na distribuição destas imagens – de tão larga materialidade nas suas formas originais – tornam a sua compulsão agradável e até célere. Mas ao mesmo tempo, é a sua consideração de conjunto que deve ser fortalecida, em conjunto com a leitura dos textos de contextualização e de ancoramento teórico. É desta maneira que entenderemos a visão do autor em olhar para a banda desenhada não somente como um objecto familiar à partida, mas algo que ainda tem contornos a descobrir em pormenor e exactidão formal e histórica. E sempre aberto o suficiente para ainda se colocarem novas questões ou obter respostas distintas dos clichés ou ideias feitas que ainda hoje se repetem, mesmo em círculos que os deveriam já evitar. A travessia temporal, geográfica, temática, estrutural, genérica, social e estilística a que Campos nos convida é, logo em si mesmo, de um estímulo profundo ao pensamento crítico desta arte.

Naturalmente que Rogério dos Campos fortalece este trabalho aturado de antologização apresentando uma sólida introdução e contextualização dos princípios teóricos, históricos e ontológicos que presidem a esta selecção, assim como uma nota final sobre o então futuro desta forma de arte que, lendo imageria, vemos ser de uma pluralidade imensa e estimulante. A qual, apesar de uma espécie de “suspensão” durante larga parte do século XX, encontraria vários graus de abertura até ao seu estado actual. A inclusão de uma musculada e invejável bibliografia ajudará aos leitores – novos ou repetentes destes mesmos textos coligidos – novas pistas para maior desenvolvimento e buscas.

Desde logo, não apenas pelo facto de estar em português mas por ser efectivamente a melhor antologia de que temos conhecimento de textos pré-modernos da banda desenhada, este será um volume que deveria ter lugar obrigatório em qualquer biblioteca que pretenda exercer um papel fundamental na compreensão, estudo e ensino desta forma que, conhecida por “histórias em quadrinhos” ou “banda desenhada”, nos fascina.

Nota final: agradecimentos à editora, e em particular a Rogério dos Campos, pela oferta deste volume. As nossas desculpas pelas fotografias de baixa qualidade. 

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