25 de novembro de 2016

O astrágalo. Sarrazin, Pandolfo e Risbjerg (G. Floy)

Baseado no romance de uma literal enfant terrible, e em muitos aspectos o seu molde original (se bem que, em termos masculinos, se poderia apontar “Antoine Doinel” ou os miúdos de Zéro de conduite – mas esta apropriação de género não deixa de ser absurda, já que a autora real foi longe nas suas acções e não foi longe na sua vida), esta banda desenhada recupera de forma perene e vincada a celebração de uma liberdade anti-burguesa que ainda hoje (ou outra vez hoje) é difícil de enquadrar. O romance homónimo de Albertine Sarrazin foi publicado em 1965. Curiosamente, o romance tornou-se novamente acessível [v. secção de comentários para nota sobre a primeira tradução] graças a uma edição portuguesa muito recente, publicada pela irrepreensível Antígona no mesmo ano da sua segunda adaptação ao cinema, ainda que infeliz e nomeadamente de uma forma negligenciável. Com efeito, esta versão planificada por Anne-Caroline Pandolfo e desenhada por Terkel Risbjerg – que constituem uma equipa com larga experiência – acaba por ser uma devolução superior da palavra, do humor e da verve de Sarrazin. (Mais) 

Haverá uma razão para que o romance tenha como título O astrágalo, uma directa a outra metafórica. O livro fala da fuga, da evasão, de Anne, da sua prisão feminina, onde estava presa por um crime que apenas em nos é contado em retrospectiva e, inteligentemente neste livro de banda desenhada, não nos é mostrado. Em francês, “evasão” pode ser ser descrito em calão por “cavale”, precisamente a palavra que iria ser o título do segundo romance de Sarrazin, parte de uma trilogia semi-autobiográfica da jovem autora, que teve um reconhecido ainda que moral e socialmente controverso sucesso na sua época. Essa trilogia é, todavia, um construto posterior, dado que a inesperada morte da autora a impediria de dar continuidade à sua vida literária, já para não falar da sua vida propriamente dita. Há, então, uma espécie de patina romântica que recai sobre os livros, reforçando o seu papel de maldito e de terrible. Mas falávamos do astrágalo. A primeira acepção é claríssima, sem segredos: quando Annie salta da janela, cai de uma forma que rompe esse osso do pé, incapacitando-a de caminhar e fugir, como se diz pela expressão, “pelo seu próprio pé”, vendo-se obrigada a aceitar a ajuda de um jovem, Julien, ele próprio às contas com a justiça e noutros movimentos de fuga. Dá-se início então a uma aventura cruzada de vidas que gravitam em torno uma da outra, ora aproximando-se pelo amor louco ora afastando-se pela força das circunstâncias, causadas pelos próprios ou não. Toda a intriga é composta por mudanças sistemáticas de lugares, cada qual com as suas dinâmicas próprias entre as personagens que lá estão e as que acabam de chegar, dando a ver uma impossível forma de satisfação da jovem Anne, que jamais encontra o almejado espaço de liberdade sonhada.

Se numa primeira fase já a questão da recuperação do osso e, consequentemente, da própria liberdade de movimentos, o percurso desempacota outro tipo de impossibilidades de movimentos, muitas vezes internos. É quase como se o impedimento de caminhar estivesse ali somente para tornar mais claro o impedimento da disponibilidade de abrir o peito ou da possibilidade de exprimir vontades. Julien não é um bálsamo directo, ou sendo-o, apresentará etapas de pagamento doloroso, e esse é outro dos calvários pelos quais Anne tem de atravessar. Se a peça de Sartre que deu origem à expressão “o inferno são os outros” (também ela adaptada à banda desenhada, como discutíramos antes) apresentava uma construção absurda e macabra, Sarrazin explora antes a mais comezinha das realidades, e coloca-nos à frente personagens absolutamente humanas de perspectivas reduzidas, e que aos poucos montam o inferno de Anne.

Pandolfo e Risbjerg trazem à tona essa mesma elegância, de uma visão esteticamente rica mas tranquila sobre o quotidiano, o trivial, mas no qual se escondem todas as pequeninas maldades, mas ao mesmo tempo as débeis e momentâneas capacidades de trazer as felicidades aos outros, de que os humanos são capazes, na sua mútua falha de comunicação emocional. Apesar da idade de Anne, da sua intempestividade, da sua fogosa juventude, ela não deixa de espelhar um certo desejo que alimentamos durante toda a vida, de simplesmente sermos directos na nossa expressão. Se se parar para pensar, veremos que a história reza o percurso tenebroso de uma jovem mulher que não mereceria – ninguém o mereceria – estas experiências: violação, pobreza extrema, desespero, prisão, roubo, assassinato, prostituição, amores lésbicos absolutamente tabu, impossibilidade de circular livremente, etc. Mas há algo na forma como a história nos é contada, na primeira pessoa, com urgência, alegria, força, que torna todo o acto de O astrágalo numa espécie de celebração positiva e frenética. A linguagem da escritora, por exemplo, no original é pejada de calão francês, deliciosos condimentos que não impossíveis de devolver em português, uma vez que os jogos são bem distintos entre ambas as línguas. Mas a imediaticidade e naturalidade fluida da língua oral das personagens mantém-se incólume na banda desenhada, e na sua versão portuguesa, deixando intacta a forma franca e majestosa, digna, com que Anne se digladia com os demais.

Risbjerg tem um desenho suave e delicado, debuxado a pincéis e particularmente dado a uma abordagem de cantos arredondados, mas procurou neste projecto manter uma abordagem mais sombria, não apenas por trabalhar a preto-e-branco, com grandes contrastes, empregando aparos, pincéis, um aturado trabalho de linhas para criar padrões e texturas, mas igualmente por dar espaço expressivo e equilibrado entre as grandes manchas de tinta e as expansões a branco, tirando partido de jogos de contraluz, silhuetas invertidas, manchas desenhadas a pincel meio-seco. Assim, erigem-se imagens memoráveis – a imensa parede interior de uma estação de comboios, uma praia fustigada pelos ventos de inverno, mas igualmente a paradoxal figura entre o frágil e o resistente da própria protagonista, Anne, cujo rosto é sólido e constante que nem uma cifra mas aberto no seu contorno, como quem recebe o espaço circundante. O próprio trabalho de composição, que poderá ter sido construído por ambos os autores, procura um máximo de diversidade, mas como todos os bons autores, não para um mero exercício de virtuosismo infeliz ou vago, mas antes a inflexão cuidada e ponderada dos efeitos dinâmicos, emotivos e estéticos que daí advêm. Tendo em conta a verdadeira cascata de momentos bem distintos ao longo do romance – as partes românticas, calmas e quase de sonho, contra as tempestades de tensão e dúvida, e as descidas mais negras ao despesero, até à estranhamente pacífica e resignada entrega final –, essas alterações, ou flutuações, são compreensíveis e necessárias.

Afinal, onde estará a razão metafórica do título? Se tomarmos em conta a sua função, a de sustentáculo e como parte de reentrância de uma coluna na arquitectura, ou seja, a de pequeníssima mas fundamental peça de apoio entre outros estruturas maiores, não poderíamos ver a própria Anne como esse elemento? Jovem, pequena, uma nota de rodapé na existência de uma sociedade maior e alimentada por interesses que raramente terão tempo para sequer a considerar a ela e seus desejos. Quebrada e abandonada na espuma dos dias, resta-lhe olhar e tentar alcançar os pequenos sopros de hipotética felicidade que se formam à sua frente, por mais repentinos que sejam. Mas são eles que são capturados, na história, no romance, e na banda desenhada agora. Adição, acrescentemos, bem distinta e forte que corre o risco de ser ver diluída na presença dos títulos mais populares e de género da produção desta editora. Logo, a atentar.
Nota final: agradecimentos à editora pela oferta do livro.  

5 comentários:

lmq disse...

Admitindo que possa não conhecer essa edição, só para informar que "L'Astragale", de Albertine Sarrazin, foi publicado em Portugal no final dos anos 60, numa edição da Europa-América, com o título "Sem Piedade".

Pedro Moura disse...

Caro Lmq,

Fico muito agradecido pela sua informação, que corrige o que acreditava ser uma novidade (fiz uma má pesquisa na BN, com efeito), e muito justa. As minhas desculpas pelo erro e mais uma vez um obrigado.

Pedro

JoseFreitas disse...

Relativamente à mais recente tradução da Antígona (de Luis leitão), no final de traduzir a nossa versão para a GFloy, decidi consultá-la e comparar algumas expressões que me tinham dado mais trabalho. Foi uma leitura interessante, porque me deu a possibilidade também de acabar por admirar mais ainda o trabalho da Anne-Caroline Pandolfo, de adaptação do romance - há cenas que estão fora de ordem na versão em BD (em relação ao original), outras que foram fundidas numa só na BD, etc... mas sempre, parece-me, com um notável respeito pelo conteúdo do original, e também pelo seu "tom".

Traduzir algumas das expressões foi complicado, e depois de ver a versão da Antígona, creio também que o seu tradutor deve ter tido as mesmas dificuldades que eu. Admito que lhe "soneguei" duas passagens que me pareceu que ele tinha resolvido melhor que eu, mas em muitas outras acho que as minhas são mais "legíveis e ao mesmo tempo saborosas", provavelmente porque não tentei manter o "som" dos anos 60 (que para mim - como "produto" do Liceu francês de Lisboa) é tão óbvio - e enveredei por uma versão mais atemporal e menos situada em qualquer época, no português.

Espero que seja do agrado dos leitores!

Quanto à questão complexa de este livro correr o "risco de se ver diluído na presença dos títulos mais populares e de género da produção desta editora", ele é real, mas esperamos obstar a isso criando um "label" nosso para romances gráficos, de que esperamos lançar mais 3-4 para o ano.

Obrigado pelos comentários.

José de freitas

Anónimo disse...

Boa noite, venho pedir-lhe ajuda, uma vez que procuro uma banda desenhada portuguesa, de cariz pornográfico, em que o protagonista é um bébé; sei que foi editada nos anos 60 ou 70, não tenho mais dados...sabe dizer-me o nome ou onde encontrar?
Grato pela sua atenção, J. Maia.
Mail: heldmaia@clix.pt

Pedro Moura disse...

Caro J. Maia,
Presumo que se esteja a referir à série "Pedrinho, esse desconhecido". Tratou-se de uma série, criada por autor anónimo (há quem conheça o autor que, por razões claríssimas, não o deseja revelado, pelos mal-entendidos que esta série pode provocar hoje), publicada nos finais da década de 1970, se não estou em erro, com distribuição de uma "Agência Internacional". Ainda encontra alguns números à venda por aí em sites de vendas em segunda mão. Boa sorte!
Pedro Moura