19 de maio de 2017

Três Histórias Desenhadas. José de Almada Negreiros (Assírio & Alvim)

Este pequeno livro de bolso reúne as três mais longas histórias de banda desenhada que Almada criou para o jornal O Sempre Fixe, todas elas datando do ano de 1926, também as maiores que ele alguma vez criou (se bem que não as esgotam). São os seus títulos “Era uma vez...”, “O sonho de Pechalim” e “A menina serpente”. A edição em causa é criada a partir dos desenhos originais “que sobreviveram presentes no espólio do artista”, nas palavras de Mariana Pinto dos Santos, na nota final, e descritos por Sara Afonso Ferreira, na introdução, como estando num “caderno composto pelo autor que colou, em cada folha, um desenho numerado”. São essas circunstâncias físicas e apartadas do seu contexto original que permitem às editoras publicar as histórias com um desenho por página, o que reformula, de certa maneira, estas narrativas. Publicado no quadro da magnífica exposição patente na Fundação Calouste Gulbenkian ao escrever estas linhas, com curadoria de Mariana Pinto dos Santos e Ana Vasconcelos, a sua circulação pode ser vista, até certo ponto, como uma maneira de dar corpo às extensões polivalentes e multidisciplinares desta “revisitação” da obra de Almada, assim como a uma concretização física das especificidades desta obra em particular. Ela emergiu para existir como objecto reproduzido, dado à estampa. (Mais)
Apesar de escrevermos nós a palavra “banda desenhada” para descrever as três histórias, ambas as editoras evitam essa palavra, com Ferreira a citar “história aos quadradinhos” (a designação desta arte antes do advento do galicismo corrente pela década de 1970) e Santos “narrativas gráficas”. Talvez estejamos a incorrer num erro, mas julgamos que essas formas linguísticas são eufemismos e fugas à constatação da criação original, o que nos leva a ponderar estar perante um ligeiro desserviço à linguagem específica formal desta disciplina. É certo que os desenhos terão sido encontrados nesta natureza de arquivo individual, como maior defesa à passagem do tempo, imaginamos. Sara Afonso Ferreira escreve de forma clara que “ao apresentar desta forma os desenhos destinados à publicação (...) Almada sugere a importância das imagens como veículo da narrativa...”. Não colocamos em dúvida de que o artista terá sublinhado a importância, valência e até possibilidade de criar narrativas visuais somente com desenhos, desirmanados até de uma camada textual, mas terá sido com efeito esse o móbil deste arquivamento? E mais importante, terá sido com essa forma arquivada que elas terão sido originalmente lavradas?

Não é a primeira vez que estas bandas desenhadas vêm a lume no circuito editorial português. O trabalho de Almada nesta publicação havia sido já reunido antes, num volume precisamente intitulado Os desenhos de Almada n'”O Sempre Fixe”, publicado em 1984 pela Gulbenkian e com uma (como sempre) excelente introdução de José-Augusto França. Ao contrário da edição presente, não apenas se avança uma contextualização que toma em conta as necessidades económicas destes trabalhos, como algumas das circunstâncias editoriais e até mesmo algumas curtas mas agudas leituras interpretativas e análises das soluções gráficas do autor. Nela encontramos estas páginas, na sua composição original, ainda que com o texto recomposto. Todavia, o seu formato é tão pequeno que dificulta a sua leitura mais suave. Igualmente por ocasião da (também magnífica, então) exposição El alma de Almada el impar: obra gráfica, 1926-1931, comissariada por Luís Manuel Gaspar e João Paulo Cotrim para o Palácio Galveias em 2004, a Bedeteca de Lisboa publicou um soberbo catálogo na qual se reúnem essas peças, inclusive estas bandas desenhadas. Aí segue-se o princípio do fac-símile, muito próximo do formato original, mas com algumas liberdades não-lesivas em termos de enquadramento e “apagando” o material que não de Almada, a repetição dos títulos, etc. (condições as quais se podem verificar pelos serviços da Hemeroteca, cujos arquivos digitais são um instrumento indispensável, cf. imagem em baixo). [na imagem, essas duas edições]

Neste contexto, convém ainda citar Marginálias, publicado pela Bedeteca e a própria Assírio & Alvim, igualmente nesse ano, recuperando os contos de uma a duas páginas de Ramón Gómez de la Serna, belissimamente ilustrados por Almada, ou ainda o anterior Todo Almada (Contexto: 1994), que também se dedica particularmente à produção gráfica do autor português. Abrindo o leque dessas assinaturas das linhas estilizadas e dinâmicas do autor (e Todo Almada inclui as “bds” espanholas), não revisitam porém estas três “historias para meudos”.

As transformações do texto (actualização ortográfica) nesta nova edição são de somenos importância, já que pontuais e superficiais, mas é a transformação das imagens, da sua distribuição de composição, em imagens isoladas por página, que fazem operar uma mudança de paradigma neste trabalho de Almada. Se se pode sempre reimaginar um trabalho histórico, e bastas vezes falámos aqui de projectos que “nunca o foram” na vida dos seus artistas para ganhar uma nova forma textual nas suas novas edições, neste caso em particular estamos perante uma transformação que reescreve a história ligeiramente. Para já, criará a sensação de que a circunstância da sua publicação, enquanto obra reproduzível e composta em sequências alinhadas na página, são apenas um fruto de circunstância secundária, forçada até, junto ao artista, e não tipificado pelo propósito primeiro da sua elaboração mesma. Isto é, terá Almada congeminado esta organização narrativa para a forma linear e “nobre” com que agora circula, tendo sido a sua vida n'O Sempre Fixe de 1926 um acidente de percurso? Se não estamos perante páginas compostas com a mesma elegância e inventabilidade gráfica de outros autores maiores desta arte franceses ou norte-americanos, e atrever-nos-íamos mesmo a dizer de alguns portugueses (com Bordalo, Stuart, Botelho numa hipotética “linha da frente” nessa dimensão do trabalho específico da banda desenhada), uma compulsão rápida da edição original demonstrará como Almada pensara as páginas enquanto unidades completas, e não propriamente como mero sustentáculo de um conjunto ocasional de desenhos. A disposição em conjuntos de 6 a 9 vinhetas de “Era uma vez”, as colunas organizadas de “Pechalim”, e os arranjos semi-regulares da “menina-serpente” apontam para algumas preocupações de composição com vista a esse “texto final”, perdidas nesta nova disposição.

Mas as consequências vão mais além. A equação da serialização, a sociabilização do texto hebdomadário e reproduzível, e até mesmo as circunstâncias económicas, mas acima de tudo as consequências textuais e diegéticas e, se fôssemos mais longe, a própria con-textualização dos trabalhos na materialidade da publicação, perde-se neste novo objecto prístino. O problema não é somente textual, porém, mas até filosófico, pois subsume a preocupação de Almada a uma ideia de “arte” desconectada destas mesmas circunstâncias mais imediatas e “salva-o” de uma área de tão pouco prestígio cultural. Quase num sentido de afirmação de que “não é bem banda desenhada”, mas antes “desenhos de artista num ciclo narrativo” que, por força do momento, foram publicadas numa publicação popular, etc. Ou seja, lança mais uma vez estes trabalhos para os necessários e alimentícios pecadilhos de juventude de um artista (se bem que na cronologia da vida criativa de Almada Negreiros, isso seria complicado, dado os seus altos e baixos em termos de recepção crítica, impacto de vanguarda e maior felicidade económica), conforme o percurso de tantos outros nomes (Júlio Resende, Bernardo Marques, Cotinelli Telmo). Da forma como agora é apresentado, Três Histórias Desenhadas estaria irmanado ao Maestro de Caran D'Ache ou o Poor Richard de Philip Guston, no sentido de livros construídos depois da vida dos seus autores, mas também passaria a circular como um dos muitos livros da mesma natureza dos que os de Frans Masereel, Lynd Ward, William Gropper, Don Freeman, ou outros que criaram narrativas coesas e curtas em pequenos volumes de narrativas gráficas, com ligações mais ou menos flexíveis à banda desenhada mais clássica.

Apesar da grande glória de Almada Negreiros em tantas outras áreas, da prosa à pintura, da dança à pesquisa geométrica, compreender-se-á melhor o autor como sendo nutrido pela vontade dos grandes autores modernistas, em que o acto de criar seja o que for é o cerne principal. O que isto quer dizer não é fazer qualquer coisa a qualquer preço, mas sim, em primeiro lugar, não ser afugentado por ideias particularizadas das disciplinas, logo sentir-se liberdade para, querendo fazer pintura, poesia, dança, arquitectura, cinema, teatro e banda desenhada, fazê-las, e, em segundo lugar, fazê-lo o melhor possível e no seio dessa mesma escolha. Ora é aí que a publicação destas três histórias desta forma em particular nos parece fugir com o rabo à seringa do que fora feito efectivamente: banda desenhada. Não conjuntos de desenhos isolados que criariam uma fiada narrativa, mas uma estruturação de conjuntos determinados de cenas, publicadas de uma maneira específica, num contexto específico, e que funcionariam como tal. A história de Pechalim, por exemplo, é aquela que mais parece ser coordenada com pranchas-blocos narrativos, apresentados em 7 capítulos, digamos assim, semanais.

Nas palavras de João Paulo Cotrim, a banda desenhada é uma “gota de água” na produção de Almada Negreiros, experimentada por razões alimentares n'O Sempre Fixe (cujas histórias maiores este livro juntaea re-publica) e, já em Madrid, no El Sol, em 1928. Como dissemos, esses trabalhos encontram-se reunidos no obra gráfica de 2004, que deverá ser re-consultado. Mas este pequeno volume permite-nos encontrar a realidade nestas unidades.

Em termos visuais, Almada nutre aqui uma linha finíssima, límpida, quase minimalista, herdeira da tradição fundada por Caran D'Ache (que queremos crer que Almada conheceria), e que criaria muitos seguidores, podendo-se arrolar os nomes de Otto Soglow ou Jean Effel na mesma linha. No entanto, Almada estava plenamente integrado num contexto bem distinto e, face aos seus companheiros de traços no papel, inclusive na publicação de Pedro Bordallo, ele distinguia-se dos outros artistas, mais afectos à herança realista e detalhada dos seus percursores, como Francisco Valença ou Amarelhe. Ainda que Roberto Nobre, Stuart, Carlos Botelho, e mais ainda Cotinelli Telmo tenham também alimentado uma abordagem mais estilizada, é Almada que atinge o paroxismo quase da linha isolada. As suas figuras esguias, “serpentinas”, a fabricação de cenários simplificados a um objecto (o banco de jardim dos gémeos, aquela linha relvada maravilhosa de Pechalim ou a sua nuvem) ou a nada mesmo, a elaboração de corpos e objectos sustentados por contornos líquidos, e os movimentos elegantes e dramáticos a que se entregam (daí que a exigência de serem mostrados lado a lado para sublinhar tal dinamismo) tornam-nos numa simples mas significativa contribuição para a história da nossa banda desenhada.

Em termos temáticos, e até de representação social, estamos perante toda uma série de narrativas mais ou menos desligadas de um propósito de retrato interventivo. As narrativas são lineares, em quase nada possuindo a fragmentação e flutuação de níveis que se poderão ler na prosa “interseccionista” do autor, apesar do onírico em “Pechalim” e do absurdo de “Era uma vez...” ou da comédia de enganos de “A menina-serpente”. Talvez esteja aqui depositada uma promissora investigação comparatista com a literatura de Almada, como é o caso dessa magnífica rábula lisboeta, A engomadeira (transformada numa pequena pérola da animação portuguesa, o filme Um degrau pode ser o mundo, de Daniel Lima com argumento de J. P. Cotrim). Em que medida é que esta atenção para com estas classes (e recordemos Saltimbancos!), presente nas prosas e em duas destas bandas desenhadas, correspondem a preocupações coesas? Talvez pouco, já que são empregues menos para criar ambientes e densidades do que plataformas das acções despedidas como setas.

“Era uma vez...” é uma espécie de novela complexa, burguesa, toda abandonada aos prazeres da vida endinheirada, e onde uma cadeia de espelhos e repetições oculta a ausência de uma verdadeira narrativa mais coordenada, psicológica e até emotiva. É quase uma narrativa mecânica, talvez herança futurista disfarçada de conto da carochinha. “Pechalim”, que tem a curiosa característica de ter textos “em branco” para serem preenchidos pelos leitores (se bem que dificilmente alterariam as acções mostradas, e que a dado momento contêm texto retrospectivo), é uma narrativa que assegura as esperanças católicas numa recompensa depois da vida e recompensa, em si mesma, apesar de apenas como sonho, na vida do pobre. “A menina serpente” também segue a desgraça e fortuna de um par de saltimbancos, e apesar de ter sido interrompida antes de se concluir, não parecia prometer um desfecho à la Gata Borralheira, mas sim a de manter a protagonista na sua vida miserável. Não havendo mais material, e sendo as histórias produzidas em Espanha fruto de colaborações ou contextos distintos, não podemos atingir uma interpretação maior, mas parecem estas histórias prometer pouca mobilidade social, mas antes uma constatação de facto das fortunas já existentes das personagens.

A re-circulação, e até foco concentrado, que este livro permitirá é de uma importância imensa, para redescobrir estas histórias. Mas não se pode perder de vista o pasto que as viu nascer.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do volume. 

2 comentários:

Isabelinho disse...

Isto que vou dizer não tem nada a ver com este livro (o qual, digo-o ede passagem, achei algo decepcionante, e por aqui fico...). A banda desenhada genial de Almada é o mito português por excelência, os painéis de S. Vicente de Fora. De notar ainda que, acima, oponho "mito" a "ciência".

Pedro Moura disse...

Ha! Ha! Compreendo perfeitamente, se bem que tenho de reler os materiais que levaram à emergência dessas mesmas ideias... mas é bem visto! Um détournement/apropriação!