23 de maio de 2019

Comanche, Obras Completas vol. 1. Greg e Herman (Ala dos Livros)


Já escrevemos bastas vezes, no passado, sobre a tendência internacional – sobretudo nos mercados francês, belga e norte-americano – que tem surgido de publicar edições de colecção, integrais, de luxo, de arquivo, etc., de todo um rol de séries cuja primeira existência havia sido em formatos de consumo mais imediato (semanal, mensal). Tendência a que chamámos “recuperação da memória” e cujo substrato é, a um só tempo, económico, geracional e informado pela transformação do paradigma da banda desenhada para uma linguagem “de livro”. Este novo projecto da Ala dos Livros vem alimentar essa tendência, de uma maneira mais modesta (voltaremos a este ponto), dedicada a uma série western bastamente conhecida de um público vasto e, hoje, decisor. 


Para toda uma geração de leitores na casa dos 40 a 60 anos, esta é uma série “primitiva” de ambos os autores envolvidos, ídolos-gigantes do que hoje chamamos banda desenhada franco-belga. Por um lado, o da escrita, temos Michel “Greg” Regnier, um dos mais prolíficos e centrais argumentistas de banda desenhada do centro nevrálgico das escolas belgas – em primeiro lugar, na segunda metade dos anos 1950, enquanto desenhador, gagman e argumentista, da dita “école de Marcinelle”, afecta à revista Spirou, onde trabalhou com Franquin para as séries Modeste et Pompon e Spirou et Fantasio, depois nas décadas de 1960 e 1970, enquanto argumentista e editor, da “école de Bruxelles”, afecta à revista Tintin. Elencar o seu trabalho seria citar muitas das séries, em todos os géneros clássicos, que ocuparam as páginas da Tintin portuguesa, por exemplo.

Por outro, do desenho, temos Hermann Huppen, precisamente “descoberto” por Greg, com quem inicia a sua carreira profissional com a série Bernard Prince, e, passados alguns anos, em 1969, começa Comanche. Autor celebrado sobretudo pelos seus projectos a solo, como Jeremiah, As Torres de Bois-Maury, Caatinga, etc., material sempre traduzido e publicado em Portugal, pela afinidade especial que todo um sector devotou a esse centro e produção.

Também falámos noutras ocasiões como o western é, sempre, um género que usualmente se faz acompanhar pelo apodo de “atípico”, uma vez que cada série celebrada (de Lucky Luke a Bluberry, Texas Rangers e Gus, Pretty Deadly e Scalped), terá sempre uma qualquer dimensão que o leitor do momento fará salientar como afastada do suposto cerne do género “clássico”. Mas isso leva a uma pergunta complexa, não apenas “o que faz a vez de uma típico western?” como se haverá tal coisa como “típico”. Isso levar-nos-ia para o território das teorias de género, mas atalhemos caminho. Comance é, na verdade, uma obra muito próxima de todo um rol de histórias, sobretudo cinematográficas, que se poderia chamar de “tipificada”. O próprio título é enganador, já que a personagem principal, de forma descarada nas histórias reunidas neste volume, não é a jovem mulehr solitária que enfrenta a sua pequena comunidade sob o jugo de um misterioso corruptor da lei, e líder de um rancho local, o que seria promissor em termos da autonomia feminina. Não, é o jovem cavaleiro-sem-cavalo, o pistoleiro e errante para todo o trabalho, Red Dust. Em muitos aspectos faz-nos recordar a personagem que Kirk Douglas protagoniza em Man Witout a Star, do imenso King Vidor. Um herói arrebatador, de capacidades físicas e guerreiras excelentes, de uma ética superior de ferro ainda que de moralidade social pouco convencional, e que soluciona todos os problemas que farão o “coração” de cada aventura.

Mesmo quando Red Dust se afasta do rancho Triple Six, a série mantém o nome da proprietária, talvez funcionando como uma força magnética que une todos os elementos narrativos e, claro está, a promessa de que, no final das aventuras, haverá sempre um lar e, quem sabe, algo mais para o descanso do herói...

Este primeiro volume reúne as quatro primeiras histórias – Red Dust, Os Guerreiros do Desespero, Os Lobos do Wyoming e O céu está vermelho sobre Laramie –, tal como publicadas na revista francesa Tintin, reservando a sua qualidade formal e narrativa: é óbvia a forma clara como está estruturada por episódios de 8 páginas cada, utilizando legendas de um narrador descarnado à aventura, retomando ou explicando os eventos, e apresentando sempre vinhetas enormes de establishing shots, quase sempre com cavalos e paisagens widescreen, onde a acção se destilará de forma perene.

Nem a escrita de Greg nem o desenho de Herman estão ainda no seu auge. Há um inegável charme na maneira como as imagens são lavradas e algumas perspectivas são tentadas, com perspectivas e escorços distorcidos, por vezes até ao ponto da deselegância mas sempre com resultados surpreendentes e dinâmicos. Por vezes, os rostos são mesmo “feios”, mas tudo é compensado pela vegetação, as paisagens áridas, o dinamismo dos corpos, a capacidade de expressão do artista, e todo aquele bailado de linhas excessivas marcando sombras, suores, pele, cansaço, emoções que o tornariam um mestre do desenho. As narrativas em si são algo expectáveis, seguindo muitas das preocupações morais vigentes trasladadas para aquela época numa sua representação “mítica” (e não propriamente com uma precisão histórica que, de resto, tampouco o cinema pareceia perseguir). Mas são aventuras concentradas e entende-se o deleite que criaram nesses tempos idos, e que esta edição permite reviver.

A razão de termos falado de modéstia deve-se ao facto de que a edição não é acompanhada de qualquer material extra, seja de contextualização histórica, balanço crítico, ou um qualquer enquadramento que recolocasse Comanche no seu contexto específico. Parece-nos um pequeno desserviço para uma edição materialmente tão feliz – com uma exímia reprodução a preto e branco do traço pincelado de Herman – apresentar as histórias de chofre, sem a possibilidade nem de, ao angariar novos leitores, os convidarem a compreender o passado da banda desenhada que lhe deu origem, nem de, àqueles cujo acto de reler vai bem além da revisitação meramente textual, desdobrar as razões do seu papel no edifício que os faz regressar.
Nota final: agradecimento à editora, pela oferta do volume.

Sem comentários: