15 de dezembro de 2022

Pássaro. Diogo Campos e Hugo Teixeira. (Ala dos Livros)

Comecemos pelo fim, ou será antes pelo princípio? Uma primeira leitura deste livro, e as informações oferecidas no seu posfácio, e materiais de produção, farão uma associação entre a trama deste volume ao famoso conto de Andersen, “A menina dos fósforos”. Existirão outras fontes também, ecos de re-interpretações, sombras de influências, ambientes e ideias visuais, fantasmas até de imaginários compartilhados – de lendas europeias a ilustração asiática (algo com que estamos familiarizados, tendo empregue esse material em algumas aulas) – mas tudo isso faz parte de um mesmo ritmo de preocupações que insufla, nutre, espoleta e ajuda a navegar até um bom e final porto, a ideia até ser obra. Estamos então perante uma pequena fábula, moral, sobre a amizade entre um pássaro, talvez um rouxinol, e uma árvore, talvez um pinheiro manso. A rapariguinha pobre de Andersen, aqui, acaba por ser uma narrativa no interior da outra, que permite uma maior espessura na narrativa, que dispensaria o factor humano naquela relação ave-árvore... A dimensão mágica das visões da menina, do conto original, dão espaço a uma realidade mais material, cruel e sofrida dos humanos nesta história, até reforçada pela maneira como os tons mais escuros e uma composição mais apertada se cinge em torno destes episódios. O sentimento geral é o de perda, sem a redenção do milagre de Natal ou de uma nova partida para as árvores na floresta, isolando tão-somente o pássaro no canto dos seus semelhantes e na liberdade e lonjura do seu voo nas montanhas.

Temos de discordar do autor, ou autores, do posfácio, quando se fala desta banda desenhada como sendo “sem texto”. É um erro comum, ou um entendimento reduzido do que significa “texto” de um ponto de vista semiótico. A ausência de matéria verbal, neste caso de um sistema de escrita simbólico convencional que transmita informação ou significado – e é discutível que isso suceda, uma vez que temos título, símbolos de música, sinalização verbal na paisagem urbana, e até balões “de fala”, mesmo que contendo mais informação visual, etc. – , é absolutamente secundário aos mecanismos de percepção, cognição e interpretação que o leitor fará da organização das imagens que vão sendo oferecidas ao longo da leitura. Não apenas as vinhetas isoladas em si, mas as suas coordenações sucessivas em sequência, prancha, livro... Ou seja, texto, há sempre. E ele é lido.

Apesar de termos em conta os limites através dos quais Hugo Teixeira controla o desejado na figuração das suas personagens, notar-se-á sobremaneira o maior domínio que tem sobre as aguadas nesta obra, assim como a maneira mais delicada com que contorna o que consegue cumprir, tornando a sua criação imagética mais sólida ao longo destas páginas. Mais, a variação de planos, por vezes de forma dramática, a atenção para com a variedade de composição, traz toda uma solidez às estratégias de storytelling visual (quem sabe debatidas a pormenor com o argumentista), que tornam Pássaro uma leitura a pedir atenção. Aliás, é precisamente nessa dimensão que o livro procura precisamente uma maneira elegante, ainda que não necessariamente inédita ou refundadora, que as imagens signifiquem o máximo. A maneira como a composição é pensada, as próprias molduras das vinhetas, os modos de encaixe destas umas com as outras e ou se formam as páginas e, por vezes, os spreads, não pedem somento uma “leitura dura” dos desenhos. Não estamos a ver somente uma “árvore cortada”, nem cenas do périplo da menina na vila - não, a vinheta demonstra o acto da árvore a ser cortada, e as vinhetas do périplo enclausuram cada acção na inconsequência que têm para a sua libertação ou conforto.

Pequeno conto ilustrado e célere, os próprios autores convidam a uma participação verbosa mas que nos parece também inconsequente e desnecessária, já que nenhumas palavras precisas poderão colmatar as dores e as perdas que são exploradas no texto do livro.

Nota final: agradecimentos aos autores, e editora, pela oferta do volume.

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