28 de julho de 2010

Promessas de amor a desconhecidos enquanto espero o fim do mundo. Pedro Franz (edição do autor)

O mercado brasileiro de banda desenhada vive um tempo de grande produção e, graças aos vários certames, encontros e grupos mais ou menos organizados que parecem existir em várias cidades, está-se a viver eventualmente um momento dinâmico, mesmo que isso não signifique um grande sucesso comercial e conquista de públicos alargados, como noutras áreas. Nesse sentido, talvez seja análogo ao que ocorre em Portugal, cuja cena da banda desenhada é bastante dinâmica, mas obriga o público interessado em perseguir os momentos correctos, os encontros e as produções. Isto é, o público da banda desenhada contemporânea tem de ser obrigatoriamente activo, e não somente esperar que os meios de comunicação social ou as livrarias mais estabelecidas lhe apresentem o que se produz. No entanto, fique o aviso de que estas considerações são apenas impressionistas, superficiais, uma vez que seria necessário uma perspectiva mais informada e moldada para perceber este fenómeno de uma maneira mais completa, quer em Portugal quer no Brasil, para depois fazer uma comparação efectiva. Os ecos que chegam do Brasil não são constantes, nem panorâmicos, pelo que nunca poderemos – aqui em Portugal – estar seguros de como é que um determinado livro poderá ocupar o seu nicho naquele país. (Mais) 

Este projecto de Pedro Franz (autor que já participou, por “cá”, na antologia da CCC, Massive) pretende alargar-se por vários episódios, que têm sido editados um por um sob a forma de pdfs acessíveis pelo seu blog, e que temos acompanhado, ainda que com a sua edição em papel, tenhamos agora uma oportunidade de falar dele de uma forma mais concertada. O aspecto mais marcado de Promessas de amor... é o facto de se tratar de um encontro convergente de duas atitudes aparentemente contrárias. Por um lado, Franz tem as linhas gerais de toda a série pensadas e planeadas, em termos narrativos e estruturais. Mas por outro, o autor pretende estar alerta à aprendizagem que vai fazendo das potencialidades e da própria história da BD/HQ para transformar ou inflexionar o processo de criação de todo o projecto. É como se soubesse a direcção para a qual deve caminhar, mas fosse alterando os instrumentos de navegação e o próprio meio de transporte à medida que avança nesse mesmo caminho.

A leitura dos primeiros episódios, concentrados na edição em papel, faz-nos aperceber que estamos perante uma história polifónica, que dá atenção a uma mão-cheia de personagens, muito diversos entre si – Lucas, um adolescente que parece ser o líder da gangue “Jolly Roger”, composta por idealistas anarquistas, dados a um terrorismo romântico e urbano, e os membros dessa trupe, inclusive representantes das ditas “força da ordem” (ou é antes “ordem da força”?), Danilo, uma criança de 11 anos que imita por brincadeira o “Jolly Roger”, um indigente conhecido como Padre Júlio Siqueira que parece ter poderes sobrenaturais, cidadãos da cidade fechada sobre si mesma em que se desenvolve esta história. Em alguns momentos, adivinha-se que a trama se adensará e criará uma malha circunscrita e que os apanhará a todos, mas isso apenas se adivinhou até agora. O capítulo quatro, por exemplo, o último incluído na edição em papel, aponta para várias origens históricas, possibilidades de explicação para o evento que dá início à diegese (uma explosão num edifício governamental, e associando-se à real história violenta do regime militarista do Brasil. Até certo ponto, Promessas de Amor... tanto pode ser visto como pura ficção, como uma maneira de (re)pensar a história moderna e política do Brasil como uma aproximação ao estado presente do país, e da apatia generalizada das populações, e ainda das eventuais soluções que serão possíveis avançar pela parte dos tais românticos anarquistas. É possível que essas soluções não se revistam de verdadeiros valores transformativos da sociedade, pois esta tende sempre a um maior conservadorismo, mas é que se fossem factores necessários a essa negociação de avanço.

O grupo “Jolly Roger” é uma representação dessas forças, que são reais um pouco por todo o mundo, sobretudo os países ocidentais das democracias contemporâneas.
Esta polifonia é procurada de uma forma flutuante, e, até ao momento, ainda não houve uma real encruzilhada narrativa em que essas personagens convergissem. Porém, no que diz respeito ao próprio processo da linguagem da banda desenhada, há uma pista: numa das pranchas [aqui ao lado] encontramos 7 balões de fala; à primeira vista, pensar-se-ia que nasciam todos numa situação de diálogo; a verdade é que cada um é atribuível a várias das personagens que vão assumindo, momento a momento, trecho a trecho, capítulo a capítulo, o protagonismo de Promessas... É como se essa prancha quisesse funcionar como um ponto convergente das várias linhas narrativas que até ali se haviam desenvolvido separadamente e, desse modo, procure apontar para a aproximação futura. De certa forma, é essa mesma a promessa de amor feita entre desconhecidos.
Pedro Franz revela uma forma muito curiosa, contemporânea, de criar um caldo coeso de toda uma série de fontes díspares da banda desenhada. Se até há uma geração atrás ainda faria sentido falar-se de certos territórios criativos relativamente separados em termos estilísticos ou geográficos (ou em que havia uma coincidência entre as linhas estilísticas e as origens geográficas), hoje em em dia há um punhado de autores capazes de uma síntese interessante. No caso deste projecto, tanto poder-se-iam apontar elementos provindos da fantasia ocidental clássica como da mangá. A máscara do “Jolly Roger” (recordando a bandeira pirata da caveira sobre as tíbias cruzadas) e a droga (“Ícaro”) que faz literalmente os seus usadores voar lança uma sombra de fantasia urbana que tanto encontra as suas origens mais remotas em Peter Pan como um avatar contemporâneo na série Tekkon Kinkreet de Taiyo Matsumoto, passando por tantos títulos de banda desenhada mainstream norte-americana e outras variações. E se há formas que recordam a plasticidade legível da mangá mais convencional, há ainda uma exploração por uma expressividade das linhas dos contornos, as sombras, e os arranjos gráficos em torno da figuração e fundo (vejam-se, por exemplo, as capas nas versões digitais para se aperceberem da pesquisa plástica que não é possível apresentar nesta reprodução), que nos colocam numa tradição vetusta e expressiva da banda desenhada sul-americana, à qual o nome de Breccia (que o autor estudou) não é alheio.

Mas não é apenas a nível da figuração que isso se nota, ou da composição das pranchas. É em todos os seus níveis de estruturação. Se há casos (os primeiros capítulos) em que parece estarmos perante uma abordagem clássica de apresentação de acontecimentos e acções sequencializadas por vinhetas, balões de fala, etc., outros passos, como vimos, abrem-se a cartografias mais livres em termos visuais, cronológicos, de legibilidade (passando mesmo por apagamentos ou “ruído” da matéria verbal, que fica fora do nosso alcance). Essa pesquisa descontínua em termos de categoriações mas contínua em termos de disponibilização dos instrumentos de uma mesma área ou modo de expressão, a própria banda desenhada, ganha contornos claros ou mais gritantes no último passo: o quinto capítulo já está disponível e é, em relação aos anteriores, bem mais radical em termos de estrutura. O autor apresenta-o quer sob a forma de um pdf, paginado, ordenado, organizado, ou seja, em que as imagens são apresentadas de uma maneira sequencial “fechada”, mas também sob a forma de um ficheiro no qual o leitor poderá reordenar as mesmas imagens, como se um baralho de cartas se tratasse, e assim possa repensar, reorganizar e, portanto, reescrever esse material. Imageticamente, encontraremos aqui toda uma série de outras experiências gráficas, relativamente afastadas daquelas que mencionámos até agora, recordando-nos Frédéric Coché, ainda que sempre Linkdesejando ligar-se à narrativa central. Tratando-se de um momento (novamente polifónico) da carga policial sobre a população, que imita o movimento de Jolly Roger como forma de contestação – mas tudo isto é adivinhado através dos fragmentos espalhados neste capítulo – poderemos imaginar que há aqui finalmente uma convergência das personagens, um nó de cruzamentos, um encontro fulcral. A resolução é adiada.

O curioso neste tipo de pesquisa ou de experimentação (que poderemos aparentar com o percurso de autores como Anders Nielsen ou Kevin Huizenga, que flutuam entre abordagens mais clássicas e narrativamente claras e experimentalismos formais mais difusos e abertos) é tentar adivinhar, e depois acompanhar, o modo como Pedro Franz gerará esse mesmo trânsito entre dois territórios, e ver até que ponto a narrativa prometida no início, com aquelas personagens todas, vai ou se diluindo ou convergindo numa recta final. Cá estaremos para ver.
Nota final: agradecimentos ao autor, pelo alerta de cada capítulo, o envio da publicação, e a viva troca de correspondência.

2 comentários:

Ana Luisa disse...


Bom dia,

Onde é que se pode arranjar livros dele?


Ana Luisa

Pedro Moura disse...

Olá.
As publicações do Pedro Franz não têm distribuição em Portugal, aconselhando por isso a contactar o autor através do seu site: http://www.pedrofranz.com.br/