2 de agosto de 2011

El Invierno del dibujante. Paco Roca (Astiberri)

Permitam-nos esta longa citação de Antonio Martín, encontrada mesmo no fecho da sua Historia del comic español: 1875-1939 (Ed. Gustavo Gili: 1978): “A repressão [franquista] alcança a banda desenhada, os editores, os desenhadores. Os níveis expressivos conquistados antes da Guerra, com o avanço progressivo da utilização dos balões de fala, o fortalecimento da elipse narrativa e a dinamização do desenho, vão acabar estancados, produzindo-se um retrocesso (…).

“Desaparecem todas as publicações que se tinham editado na zona republicana e as revistas infantis acabam monopolizadas, enquanto formulação editorial, pelos organismos e pessoas afectas ao novo regime, sem que se concedam autorizações de edição a outras revistas que pudessem fazer-lhes concorrência. (…).

“É neste momento, quando a evolução da banda desenhada sofre um corte, devido à sua subordinação à ideologia e interesses do vencedor, que é necessário valorizar, por referência, a crise global pela qual atravessa a cultura espanhola a partir de 1939. (…)
“Todavia, apesar da grande qualidade gráfica dos desenhadores espanhóis, que os coloca entre os primeiros da cena internacional, os conteúdos das suas obras acusam a crise sociocultural espanhola originada pela derrota republicana” (pg. 228). (Mais) 

O que se pretende com esta longa citação é dar a entender, por uma fonte possível, o “intervalo” de criatividade criada pelo estiolar da liberdade e do progresso intelectual e artístico trazido pelo regime de Franco, nítidas semelhanças lançadas à história portuguesa, sob o regime de Salazar. Não é possível querer acreditar que a expressão de um artista seja totalmente livre sob um regime dessa natureza. Independentemente do que nomes individuais possam conquistar, experiências que possam emergir aqui e ali, o escopo desses gestos não é, de forma alguma, garantido, sustentado e passível de herança.

El Invierno del dibujante é um livro que dá conta de uma pequena aventura de um grupo coeso de artistas e amigos (v. adiante), autores espanhóis de banda desenhada na recta final da década de 1950, que tentam ganhar algum grau de liberdade criativa. Eles desejam desligar-se dos trabalhos encomendados pela editora Bruguera, gigante da altura, que publica a revista Pulgarcito, onde esses artistas trabalhavam, e que obrigava - naturalmente, na sua época - a um crivo de apreciação e correcção pela parte de um funcionário da casa, Rafael González Martínez. A solução encontrada é a fundação de uma cooperativa, a D.E.R., ou Dibujantes Españoles Reunidos, com a sua própria publicação, cujos conteúdos seriam por eles mesmos geridos. Essa revista seria a Tío Vivo, mas que não iria sobreviver a longo prazo. Foi uma espécie de “revolução que não foi” como parece ser apanágio de tantos projectos no mundo da banda desenhada. El Invierno mostra um episódio de um breve momento em que as condições de produção e expressão pareciam poder melhorar substancialmente, antes de virem a ser absorvidos de volta às máquinas existentes e integradas nos modos de funcionamento do regime sócio-económico (a própria revista viria a tornar-se parte do empório Bruguera).

Se bem que os problemas que estes artistas tentam combater e corrigir possam parecer os existentes em relação ao tratamento das suas obras e direitos autorais - era a editora quem guardava os originais, eventualmente destruindo-os se tivesse problemas de armazenamento, sendo passíveis também de re-publicação sem novo pagamento, já para não falar das exigências de mudanças editoriais no que diz respeito às histórias, diálogos, desenhos, etc. - também se poderá entender que eles desejavam perseguir um outro tipo de humor, o qual, mesmo mantendo um aspecto superficial e facilista (“Céus, o meu marido!”), poderia conquistar subentendidos de uma crítica mais mordaz em relação à sociedade de então, que começava a querer demonstrar pequenos movimentos de resistência em relação ao regime que se instalava cada vez mais confortavelmente.

No prólogo de Antoni Guiral, lê-se o seguinte: “Carlos Conti, Guillermo Cifré, Josep Escobar, Eugenio Giner y José Peñarroya fueran los elegidos, o los autoelegidos. Eran autores de personajes populares con prestigio, como Carioco, Tribulete, Carpanta, el inspector Dan o don Pío. Algunos habían sido educados en la República, todos habían sufrido en directo la Guerra Civil”. Sofredores de uma guerra perdida e autores de personagens que compõem um imaginário localizado junto aos seus leitores. São esses os ingredientes que Pablo Roca, artista de Valencia, emprega. Ele não esconde que o ponto de partida para este seu projecto foi o prazer que o conquistou durante a infância ao ler as revistas da casa Bruguera, algumas das quais chegavam a Portugal através de alguns círculos. Permitam-nos a nota pessoal de nos recordarmos, mas sem saber como integrar na distribuição nacional da época, ler todos os Verões histórias da Mortadelo y Filemón, Zipi y Zape, Super López, e muitas outras personagens, nas revistas espanholas a que tínhamos acesso - não sem uma estranha sensação de milagre, uma vez que elas não pareciam existir em mais lago algum - na pequena cidade de Sines. Há, portanto, em El Invierno, uma mescla de nostalgia, arqueologia da banda desenhada espanhola, preocupação na reconstrução sociológica e política da época, e devolução das vozes.

Claro que a nossa ignorância não nos permite afirmar - sem que o pudéssemos confirmar - que a investigação a que o autor se entregou, através de leituras, conversas e entrevistas, é rigorosa ao ponto da impossibilidade da sua contestação, mas não o negamos. É o que parece ser. E ela está presente não somente na história em si, mas em toda a matéria visual e de composição do livro. Cada vinheta mostrará sempre uma concatenação de informação que só pode ser entendida como um jogo curioso de pistas e referências, tornando-as densas construções históricas.
Densa é também a trama narrativa, que opta por uma estrutura de episódios fragmentados e alternados, com avanços e recuos no tempo da diegese. Imaginamos que haja um trabalho de concentração do tempo, de dramatização de processos mais longos, mas a fórmula narrativa funciona. Abrindo a narrativa está um capítulo “posterior” à aventura da revista (o Inverno do retorno à casa-mãe Bruguera após o falhanço, um Inverno de descontentamento, poderia dizer-se), seguindo-se o brilhante e quente Verão anterior em que a ideia foi tomando forma, mais os primeiros passos, e a aparente vitória, seguindo-se então a “traição” interna (um dos colegas fornece uma informação sobre a distribuidora, a qual aceita boicotar o projecto)… Estamos sempre entre um presente invernoso, derrotista, e a esperança do Verão. O autor opta também por marcar cada episódio em termos ambientais e cromáticos, já que cada episódio é impresso em folhas coloridas (azuis para o Inverno, amarelos torrados para o Verão), alterando o aspecto geral - se bem que haja marcas também noutros aspectos visuais.

Muitas das opções da mise en scène são menos melodramáticas do que, de facto, documentaristas: são muitas as cenas em que as imagens não alteram o enquadramento nem a perspectiva de vinheta para vinheta, e temos acesso somente aos diálogos dos artistas retratados. É como se Roca quisesse que ouvíssemos (de novo) as vozes originais dessas mesmas pessoas.

No entanto, apesar de serem estes artistas os aparentes protagonistas da história - são eles os “actores” da trama, encontram-se na capa, há uma maior atenção ao longo da narrativa, etc. -, é a personagem do director artístico da secção de banda desenhada (“historietas”, diz ele, “não tebeos”, que lembrava a concorrente TBO), Rafael González Martínez aquela que, estranha e paradoxalmente, parece ser a que Roca quer mais redimir. Ele surge como o grande obstáculo: é ele quem aceita ou rejeita trabalho, quem faz exigências criativas, quem nega aumentos ou mais direitos. Mas Roca não o “desculpa”, o que faz é antes pôr a nu como as circunstâncias da vitória do lado fascista pode esmagar (quase?) totalmente o espírito de um homem combativo, e depois digeri-lo e torná-lo parte da sua própria máquina discursiva. González é um homem amargurado por ter visto os seus sonhos de escrita impedidos pela vitória franquista, e que encontrou naquela editora a possibilidade dnão só de trabalho mas também de criar algumas personagens, espécie de possível desvio aos seus sonhos. À primeira vista, portanto, González não é um “resistente”, mas sim a própria agência opressiva da Bruguera em relação à liberdade criativa dos artistas. Mas é ele quem “fecha” El Invierno, já na velhice, despedindo-se da sua profissão e deixando apenas como traço sobrevivente as personagens sorridentes e infantis (logo, “cegas” em relação ao seu drama) da revista. No final, perguntamo-nos se o Inverno é de facto o dos desenhadores-fundadores da Tío Vivo, ou se é do director González,… talvez isso se deva a duas ou três linhas de fuga que o autor desejasse explorar e depois não encontrasse a fórmula de equilíbrio.
O desenho de Roca é de uma abordagem menos expressiva do que contida, legível. Recorda um certo posicionamento identificável em Matt Madden ou James Sturm ou Jason Lutes, herdeiros de uma “linha clara” já distante, e que não deseja ser empregue em termos de ingenuidade de representação do mundo, isto é, que visa a sua simplificação e apagamento dos vincos, mas que pretende ainda assim permitir um trânsito directo ao mundo que mostram.

Este livro está no seguimento de outros projectos em Espanha comparáveis, talvez sendo Los Profesionales, de Carlos Giménez, o mais famoso - que envolve algumas das mesmas personagens históricas. Quiçá um estudo comparativo entre os dois possa revelar forças quer de um quer de outro projecto.
Nota final: agradecimentos a Margarita C. Menezes, pelo empréstimo do livro.

2 comentários:

Ricardo Navalho disse...

Obrigado pelo artigo.
Mas permita-me uma correcção:
Aonde se lê, e cito "(...)sem que se concedam autorizações de edição a outras revistas que pudessem fazer-lhes competência." deveria ler-se concorrência. A palavra espanhola competencia significa concorrência.

Pedro Moura disse...

Caro Ricardo,
Eu é que agradeço pelas suas palavras e pela correcção. Foi uma distracção tremenda, não só que deixou passar um "falso amigo", como não fazia qualquer sentido em português.
Obrigado!
Pedro