23 de agosto de 2011

Renée. Ludovic Debeurme (Futuropolis)

Renée é uma complexa “segunda parte” de uma narrativa maior inaugurada por Lucille. Quer dizer, é segunda parte de uma forma clara: Lucille terminava dizendo ser a primeira parte de algo que seria completado por Renée, perfazendo uma dialogia sem título unificador. Mas é “complexo” porque a natureza de Renée não segue aquela de Lucille. Os instrumentos de Debeurme dão continuidade à diegese do livro anterior - pelo menos no que diz respeito às personagens principais, aos locais por elas atravessados, a pormenores da trama e da backstory - mas, por outro lado, são bem mais expansivos ao nível da elipse, da justaposição de episódios, da exploração da esfera do onírico e das obsessões internas psicológicas das personagens, e do mergulho na matéria gráfica permissível por este meio. Digamos que Debeurme intensifica os instrumentos e metodologias que estavam já presentes em Lucille. A sua matéria de expressão, os seus modos de despertar as sensações encontram-se aqui robustecidos (é como se aquilo que se verificou em Le Grand Autre fizesse o autor desviar-se de um caminho ainda “naturalizado” do primeiro volume para a desterritorialização progressiva destas outras obras).
O facto de possuir um título distinto do volume anterior, e nada o unir a ele em termos paratextuais a não ser aqueles permitidos pela visualidade e a objectualidade dos dois volumes - tamanhos, formatos e características físicas idênticas, mesmo modelo de design e escolha de tipo de letra e arranjo gráficos dos elementos -, e esses mesmos títulos serem o de nomes de duas raparigas diferentes (apesar de se “unirem” no final através da sua história comum, ou que convergem num caminho comum), aponta para uma forma de construir um texto unificado sob a égide de algo que ultrapassa a mera colagem de ambos os livros. Se Lucille se centrava quase em absoluto na personagem do mesmo nome, num brevíssimo Bildungsroman nervoso, Renée inicia o seu percurso perto desta outra personagem para depois, à medida que vai expandindo a rede de relacionamentos da protagonista, nem sempre de forma nítida, se entrosar na continuidade da novela de Lucille. O uso deste termo, novela, deve dar conta quer da sua dimensão (um tamanho reduzido, uma maior concentração dos eventos retratados num número fechado de personagens, permitindo assim um foco mais sentido nas emoções e psicologia das mesmas, o enredo que encaixa todo e qualquer acontecimento, que se torna significativo e não apenas ambiental) quer da sua acepção moral (de “enredado”, “emotivo”, “intenso”). E ainda poderíamos apelar à sua associação com o universo do folhetim, a publicação periódica, eventualmente explorável em relação à obra de Debeurme numa acepção adaptada às suas circunstâncias.
Na verdade, poderíamos até contestar o grau de experimentalismo do autor, ou de inauguração de formas contemporâneas de narrar e tecer enredos se apenas nos ativéssemos à estória, à sinopse… Todavia, em alguns aspectos, Renée fica de um lado de fora, ou de excepção, da linguagem. Mesmo tendo em conta que a linguagem verbal (ou a literatura), enquanto sistema sistema modelizante secundário (para empregar o termo consagrado pelos linguistas russos, sobretudo Lotman), é aquele sistema empregue para descrever todos os outros - pintura, cinema, banda desenhada, música - sabe-se que sempre se “perderá” algum grau de sensação do texto (ou “obra”) original - o quadro, o filme, a história de banda desenhada, a sonata. O que acontece neste caso em particular é que, em primeiro lugar, sendo possível apresentar-se uma sinopse (“Este livro continua a história do relacionamento de Lucille com o seu namorado preso, Vladimir, e a mãe dela, assim como de Renée e o seu relacionamento com um novo mas mais velho namorado, Pierre, etc.”, por hipótese), ela reduziria o livro a uma matéria verbal que o atravessa somente como um baixo contínuo que providencia o substrato no qual se sustenta a exploração de Debeurme. Não captaria, portanto, o que Renée é. Mas em segundo lugar, e consequentemente, as próprias metamorfoses e trânsito contínuo que existe entre todas as camadas (diegéticas, actanciais, físicas/fantasmáticas, visuais) da obra não são captáveis pela mais completa das descrições.
As formas de composição/figuração recordam algumas das opções correntes da banda desenhada do século XIX, sobretudo aquela de revistas periódicas europeias tais como as Fliegende Blätter ou os variadíssimos títulos francófonos: páginas com grandes áreas arejadas de branco, “ilhas” de representação de acção sem moldura, usualmente em números restritos - de duas a quatro - sem se coordenarem em eixos fechados, regulares ou simétricos, ou grelhas de composição, e constituídas as figuras com um número de linhas entre as minimamente necessárias à sua iconicidade (um mero contorno, se quisermos) e algumas valências de expressividade gráfica (complementos que moldem esse mínimo abstracto). Tudo isso concorre para que se crie uma ideia de velocidade lenta, conforme mais adiante.
São vários os momentos em que parece estarmos a testemunhar a transformação tremenda de monstros, ou em que corpos humanos revelam formas de pesadelo, de desvio teratológico… todas as personagens, num ou outro momento, atravessam esse desvio. Um leitor incauto poderá pensar estar perante uma obra que explora episódios maravilhosos, e que esta é uma obra do fantástico ou do horror (como, por exemplo, o Black Hole de Burns ou a obra de Junji Ito). Mas rapidamente nos apercebemos que as transformações são apenas projecções fantasmáticas das personagens, ora sobre si mesmas ora sobre os outros, por vezes como fundamento do medo, outras como forma de expressar um desejo avesso. E não haverá maior fantasma, de modo nítido mas ao mesmo tempo apresentado de uma maneira complexa que envolve a memória, a projecção do leitor, a intervenção de um narrador omnisciente com acesso a toda a matéria que compõe o universo diegético e as próprias possibilidades materiais da banda desenhada, do que o irmão de Renée, o qual atravessa as paisagens como se estivesse, a um só tempo, presente fisicamente nas paisagens e ausente na sua própria morte.
No que diz respeito à trama, e na visão conservadora apontada atrás, poder-se-ia dizer que essas metamorfoses “não acrescentam nada”.
Mas isso seria não compreender a matéria de expressão de Debeurme, que é a de criar uma camada de acontecimentos visuais, não totalmente subsumíveis ou integráveis na descrição ou captura verbal da história, para criar pontos de fuga que criam significados extra-verbais.
As metamorfoses a que nos referimos são as mais das vezes operadas sobre apenas uma parcela do corpo - o nariz, as pernas, as orelhas, os braços - o que poderá apontar para uma forma como os homens e mulheres se consideram a si mesmos e aos outros por fragmentos. Quer o olhar de desejo quer o olhar de nojo centra-se sempre em “partes do corpo”, eleitas então como símbolo desse desejo e/ou nojo, o qual, parcial, passa a dar o seu valor ao corpo inteiro, ou até mesmo à pessoa. No caso de Renée, essas metamorfoses apenas dão lugar ao que afasta, cria desapreço e repulsa. Num momento, a própria Renée sente-se intimidada numa festa de pessoas para as quais ela é estranha: a sua forma de defesa fantasmática é um crescimento à Alice que a faz ocupar toda a sala. Noutro, Vladimir pensa na prisão como se encontra preso em várias “caixas” sucessivas (a sua mente, o seu corpo, a cama do beliche, a cela, a prisão, talvez o mundo), levando a fragmentações sonhadas. Quer num quer noutro caso, e em todos os outros, nunca estamos perante o todo, mesmo que o corpo esteja envolvido na sua completude aparente.
Os diagramas impostos pelas complicadas relações entre as personagens não implica necessariamente uma centralidade dessa dimensão em Renée. O livro segue, de resto, uma estratégia narrativa detectável em variadíssimos outros exemplos: em primeiro lugar, divide-se a atenção do leitor sobre um número alargado de personagens que não parecem ter nada que os una, criando-se uma primeira camada polifónica e socialmente variada; depois vão-se revelando elos de ligação entre um número reduzido delas, e progressivamente adensam-se essas relações, até se criar um prisma perfeito e enclausurado num significado (a opção por um evento único que os una é também possível); mesmo as “pontas soltas”, como narrativas encaixadas, ou o irmão de Renée, acabam por encontrar o seu lugar claro. Mas as linhas de fuga de Debeurme estão não na exploração da mestria narrativa (ou literária, linguística, verbal) mas antes da criação de sensações proporcionadas pelas imagens, pelas metamorfoses, pela abertura subtil e não-resolvida da parte do onírico e fantasmático (ao contrário de, por exemplo, David B., o qual integra essas dimensões fantasiosas na tessitura da experiência do real das suas personagens, como se não houvesse fronteira ontológica entre uma e outras - e não há, na experiência e na memória).
Se bem que não se possa apontar a uma constância de fio a pavio neste livro, no que diz respeito ao ritmo da narrativa - uma vez que se mesclam momentos de diálogos entre as personagens, outros de narração, outros de episódios “silenciosos” mas de acção, outros ainda de perspectivas oníricas ou internas à psique dos protagonistas, e até mesmo momentos de suspensão narrativa no que parecem ser intervalos com taxonomias - a velocidade de Renée é em geral lenta, bem mais lenta do que Lucille, como se desse conta de um movimento, a um só tempo, contínuo e constituído de inércias (o que acaba por ser uma mera descrição física da banda desenhada enquanto modo de expressão, ou talvez da animação, como a de um Piotr Kamler, por exemplo). É um movimento subaquático, uma lentidão líquida, uma inércia fluida. A leitura deve segui-la do mesmo modo.
Nota final: agradecimentos ao editor da polaca Timof, pela “troca”, e a Jakub Jankowski, pelo elo de ligação.

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