6 de agosto de 2011

Georges et Louis, etc. Daniel Goosens (Fluide Glacial)

A comparação entre a dupla “Georges et Louis” de Goosens e a de “Bouvard e Pécuchet” de Flaubert não é nova, tendo-se, que saibamos, instituído mesmo ao final dos anos 1970, com textos de Thierry Groensteen (sem prometer aqui exactidões). Essa aproximação é quase automática na leitura destas personagens… Mas ao passo que as de Flaubert ostentavam a sua curiosidade e inanidade em equilíbrio, Goosens parece concentrar a imbecilidade toda apenas em Louis, ao passo que Georges surge como uma mistura entre a voz da razão que prefere estar em silêncio ou o gesto reparador que prefere a inacção.
Quando falámos do Commando Torquemada, falámos brevissimamente do papel das revistas, inclusive a Fluide Glacial, onde habitam as personagens de Goosens, na economia dos géneros e dos humores no mercado francófono: em linhas gerais, encontrar-se-á aí um humor de barba rija, com algum grau de coragem iconoclasta, mas sem entrar em territórios de escatologia, mordacidade política e social tão vincadas como a Hara Kiri ou a L‘Écho des Savanes, por exemplo (sem bem que existam qualificações que tornam estas aproximações mais complexas do que podemos aqui dar conta). E o humor destas personagens é uma pesquisa constante da natureza humana., do desejo de ser-se amado por conquistas inanes, por soluções fáceis de atingir um qualquer grau da fama e da eternidade que nos são negadas a todo o momento. Goosens é um professor académico e investigador de inteligência artificial. E é curioso como, tal qual o SETI (o programa Search for Extraterrestrial Intelligence) levou ao seu corolário contrário, o STI (Search for Terrestrial Intelligence, as pesquisas clínicas de Goosens sobre inteligência artificial o tenham levado à pesquisa informal e criativa da desinteligência natural.
A Casterman, depois da sua compra ou junção com a Fluide Glacial (e após os vários costumeiros embates e combates internos editoriais), propõe agora uma série de livros que permitem um novo acesso e arrumação quer da série mais famosa de Goosens - isto é, o seu trabalho que mais se encaixa na economia clássica francófona da produção de banda desenhada - quer de outros títulos mais ou menos avulsos, mas que tocam os mesmos territórios de humor iconoclasta, como Sacré Comique.
É a segunda vez que utilizamos a palavra “iconoclasta” neste texto, mas estamos inseguros sobre qual o grau de empregabilidade e eficácia desse termo neste contexto. Em Sacré Comique os alvos das figurações não poderiam ser mais visíveis e nítidos. Por um lado, Jesus Cristo, no papel central, em que vários relatos curtos ou episódios atravessam toda a sua vida mas mesclando-a ora com elementos impossíveis e absurdos ora com géneros clássicos do cinema - western, musical à la Minelli, etc. -, recordando dessa forma muitos outros exemplos da vida de Jesus sob a forma de bandas desenhadas irónicas, divertidas e muito mais eficazes na sua iconoclastia (o Jesusito da el Jueves, A Vida de Jesus, de G. Haderer, etc.) do que em ataques mais directos, violentos ou mesmo pornográficos (poderíamos encontrar aqui um grau de comparação de qualidade entre Goosens e o Torquemada de Lemmens e Nihoul, ganhando seguramente o primeiro autor). Por outro, numa única e concentrada história, surgem figuras reminiscentes de toda a panóplia da banda desenhada clássica franco-belga e para além dela, numa estranha festa “gaiola das malucas”, com um fim estranho, algo desajustado, mas que serve de prémio de brutalidade bacoca para terminar o processo subtil e quase hipnótico da história em si.
A razão da superior inteligência do trabalho de Goosens reside no facto do humor ser criado de uma forma pouco directa, não residindo nem numa (perdoe-se o oxímoro) obscena cena visual, nem numa situação demasiado clara, nem numa “boca” citável, mas antes da forma como todos os elementos se unem para criar um cómico de situação complexo. É um humor, digamos, ao retardador, próximo do humor de um Steven Wright, por exemplo, em que o cérebro e todas as funções culturais devem estar em pleno funcionamento para uma também plena fruição do que se passa.
Quanto a Georges et Louis, é a nossa relação alongada com estas patéticas personagens - no seu sentido mais profundo de pathos, “emoção”, “sentimento” - que nos vai ofertando razões para, ao conhecermo-los cada vez melhor, encontrarmos mais formas também de rir. Não apenas deles, mas de tudo o que os rodeia, como se o mundo à volta deles se tornasse tão ridículo como eles mesmos. Como um comensal que ao cair de costas na cadeira, se agarrasse à mesa e partilhasse o seu desastre com todos os demais.
Louis tem um sonho: escrever. Quer atingir os píncaros da fama, o acme da proficiência literária, a conquista de um qualquer cume de excelência das letras, mas não há qualquer solução fácil para esse fim e, pior ainda, Louis não tem talento, nem inteligência, nem graça, nem qualquer tipo de aptidão que o pudesse sequer aproximar desse caminho. A única forma de Louis se aproximar disso é torturar o seu colega Georges com todas as ideias, fórmulas, sinopses que lhe vêem à cabeça, as mais das vezes variações de temas e histórias conhecidas, colhidas de toda a literatura (francesa, sobretudo, mas incluindo mesmo o Genesis). Goosens mostra-nos muitas vezes o estranho gabinete, familiar após repetidas visitas nossas, em que ambos parecem trabalhar - Georges despacha papelada, Louis interrompe o trabalho virtual com os seus desejos e projecções literárias - com essas descrições infindas e enfadonhas e, por isso, cada vez mais hilariantes. Outras vezes o autor torna visível as cenas imaginadas por Louis, dando-nos acesso às suas fantasias jamais escritas. Outras ainda, o próprio Louis é lançado em situações espatafúrdias em que parece sempre atingir um limite mas que o autor sempre descobre ter ainda mais uma dobra a explorar, uma mais consequência a empilhar. Como no momento em que o seu retiro para um mosteiro se transforma num factor de maior destruição da instituição religiosa do que ataques adolescentes “de fora”.
Limite e familiaridade, constância e variação, inacção e exploração maximal, absurdo e hilariedade, são esses os factores que concorrem numa tensão permanente e que tornam esta numa série cuja exploração será sempre recompensada.
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta dos vários volumes.

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