8 de agosto de 2011

Moving Pictures. Kathryn & Stuart Immonen (Top Shelf)

Há uma diferença fundamental entre um livro de banda desenhada e um livro de literatura, expresso de uma forma intuitiva pelos seus leitores de modo imediato na sua primeiríssima aproximação. (o mesmo poderia vir a ser dito, com qualificações ligeiras, dos livros de artista, os livros ilustrados, infantis ou outros, livros de poesia visual, de experimentalismos vários, etc.) A escolha de uma obra literária é as mais das vezes ditada pelo seu conteúdo, pelo espírito abstracto que o atravessa, moldado esse por informações para- ou extratextuais: o nome do autor, a editora, a colecção, uma recensão lida, um entusiasmo transmitido por um amigo. Ou até o título.
Um livro de banda desenhada é também eventualmente escolhido por factores idênticos - este escritor, aquele desenhador, esta personagem, aquela série, estoutro selo editorial, etc. Todavia, o sistema holístico que a imagem do livro em si faz emergir tem um papel fortíssimo: o formato, a capa, o tipo de materiais empregues na sua fabricação. E as imagens. Mais rapidamente folhearemos um livro de banda desenhada (e outros objectos análogos) e teremos as imagens do interior a apoiarem a decisão da sua leitura do que o exame de dois ou três parágrafos, ou de uma estrofe, ou de uma entrada, em livros de texto. (se bem que pode ocorrer qualquer situação em qualquer caso: a espera ou busca de um livro com aquela capa, este verso enigmático fazendo-nos buscar a mesma maravilha nos restantes, etc.).
Este projecto do casal Immonen tem um título enigmático, programático, e paradoxal. É um enigma porque apenas aos poucos, no seu desenvolvimento pela leitura e entrega do leitor vai revelando o seu significado. Programático pois promete a par e passo o que o enredo encerra. Paradoxal pois os significados de que se reveste são, entre si, contraditórios, e por isso mesmo, constroem um cristal reverberante com esses mesmos significados.
A primeira hipótese de tradução mental de “Moving Pictures” é a da sua trama mais basilar: pelo Verão de 1939, na Paris de Vichy, o pessoal do museu do Louvre encontra-se numa azáfama para proteger, embrulhar e eventualmente deslocar muitas das obras de arte que possui, algumas das quais sob a atenção particular da Comissão Militar para a arte dos alemães. Como se escreve na badana do livro: “Esta (não) é essa história”. Na verdade, essa é a apenas a contextualização para elaborar uma trama em torno de duas personagens, uma curadora anglo-canadiana, Ila Gardner, e um oficial alemão, Rolf Hauptmann, trama essa que tanto os envolve profissional como amorosamente, como ainda a outros níveis mais complexos, sem abdicar de uma promessa, jamais revelada de modo claro, quer pelas palavras quer pela representação das imagens, de implicações de espionagem. A narrativa abre com uma entrevista oficial na sede, pressupõem-se, da junta alemã, em que Hauptmann interroga Gardner do paradeiro de certas obras de arte, para introduzir outros temas, ao mesmo tempo que a diegese se abre a analepses tão reveladoras como conducentes à densidade e mistério da história.
A segunda hipótese, aliás a terceira e talvez menos significativa, uma espécie de red herring, é a de “filme” (recordemo-no que o termo moving pictures era muito comum numa fase do cinema, pelos anos 1920-30). Não há, em qualquer momento da narrativa, referências a filmes, nem há qualquer pista que nos possa colocar nesse caminho, com duas excepções, uma fraca, e a outra menos, mas que apenas operará a um nível superficialmente estilístico. A excepção fraca seria considerar o livro dos Immonen à luz das possíveis fontes de influência cinematográficas que aqui operariam, e não faltarão textos cinemáticos que serviriam esse propósito. A outra referir-se-á a uma estratégia visual e compositiva dos autores em citar, por assim dizer, algumas das imagens (desenhos, pinturas, esculturas) do museu, à medida que elas são referidas na interrogação a Gardner. O estilo gráfico dessas imagens é bem diferente do do resto do texto, este mais estilizado, com grande contraste entre as áreas brancas e a intervenção da tinta preta, aquelas em tramas apertadas recorrentes a várias técnicas, linhas texturadas e com volume. Há casos, aqui e ali, em que essas imagens surgem na dimensão espacial da acção, mas há uma mão-cheia de casos em que elas não estão presentes espacialmente, ou são projectadas de formas que complicam as relações entre os objectos visíveis. São como que projecções de facto, projecções que partem de algum grau de desejo, o que nos remete, a uma só vez, ora ao sentido de cinema, ora ao do próximo significado possível.
Recuando um pouco, portanto - no que diz respeito às finíssimas e indistrinçáveis camadas que compõem uma obra -, chegamos a essoutro significado: o de “imagens comoventes”. Estas imagens não surgem apenas como objectos tangíveis e alvo da atenção dos dois protagonistas, cada um potencial representante de dois pólos de interesses políticos diversos. Elas são, como já afirmado, objectos de desejo, não apenas em termos da posse directa deles mesmos, mas de outras projecções - outra vez - possíveis: a relação sexual mas emocionalmente indiferente entre os protagonistas não é um factor alheio a isso. Um outro objecto é alvo de um clássico MacGuffin, o da espionagem envolvida: um documento oculto? Uma obra-de-arte jamais nomeada? Uma pessoa que pode ser mais do que aquilo que imaginamos ser, e cuja visibilidade apenas serve para ocultar melhor o seu verdadeiro peso e sentido?
O que termina por acontecer do embate de todos esses significados, ou dessas camadas de interpretação possível, baseadas por seu lado nas várias camadas do que se tece em Moving Pictures, é uma novela curta em que a maioria das emoções e das relações ficam por dizer. Esse silêncio pode estar relacionado com vergonha, incapacidades de expressão, força das circunstâncias, ou pura e simplesmente erros de conveniência da parte das personagens. E o ficarem por dizer não quer dizer que não estejam de alguma forma presentes, criando uma patina por todo o texto tal qual o pó imaginário fará sobre as obras de arte deslocadas. Há um momento em que se falam de obras mais tarde reencontradas - “um Reubens numa minha de sal. Um De Chirico no fundo de um poço” - de forma a que se criem “lendas”, as quais uma personagem diz “já se estarem a formar”. Talvez Moving Pictures queira, sem desvendar tudo o que poderia haver a desvendar, criar um movimento análogo em que a sua interpretação “lendária” possa depois ocorrer na mente de cada leitor.
Ambos os autores, que têm outros trabalhos em conjunto, apresentam aqui um projecto diferente do usual, na medida em que é editado numa casa alternativa, por oposição à Marvel que acolhe o restante trabalho. Optam por não diferenciar, em nenhum lugar do livro, o seu trabalho, se bem que tudo nos possa levar a crer que as imagens pertençam mais a Stuart Immonen, ao passo que a escrita poderá ter uma maior responsabilidade de Kathryn Immonen. Mas nada nos obriga a essa certeza. O aspecto mais “alternativo” do livro não estará tanto na construção das personagens, nem nas opções gráficas - alto contraste, preto-e-branco, uma composição semi-regular de 2 x 3 ou variações - mas tampouco na construção alternada de um tempo presente, o do “interrogatório”, e o passado que une todas as personagens. Estará mais no ambiente vago que nunca se coalesce numa certeza do fito narrativo, na abertura do desenlace, na incerteza que paira sobre as inter-relações entre as personagens. No final da leitura, presume-se, os autores desejam então que sejam as suas próprias imagens aquelas que se tornem as mais comoventes.

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