20 de janeiro de 2015

Preto no branco (Façam fanzines e cuspam martelos)

Depois do momento em que se aventara o fim das publicações de papel pelo advento das plataformas digitais, e a compreensão de que esse aparecimento tinha um propósito e limitações específicas, e que levaria a uma paradoxal maior atenção à produção cuidada do livro enquanto objecto, atomizando e entrosando com uma maior acessibilidade e democratização dos meios de produção (pelo menos no “nosso” mundo ocidental), observando a multiplicação de meios e formas de edição, materiais e ferramentas, não deixa de ser salutar e razão de celebração encontrar quem ainda cultive modos de produção agora vistos como “clássicos”. Falamos dos fanzines em formato A5. Existindo ainda quem os cultive afincadamente, a experiência de rigor editorial levada a cabo pela plataforma Façam fanzines e cuspam martelos, um trabalho coordenado entre os artistas Catarina Domingues e Tiago Baptista, este último partilhando de forma mais contínua os mundos da banda desenhada e das artes visuais, tornam este título em particular, Preto no branco (primeiro número de Setembro de 2012, último de Novembro de 2014), um objecto obrigatório de seguir. (Mais) 

Deixaremos aqui algumas breves considerações e descrição.

Pela observação das capas (pelo menos dos três primeiros números) e o título, a referência a Malevitch é não apenas clara como pretenderá funcionar como um ponto de partida em termos de significado. Se bem que o contexto sócio-cultural das vanguardas russas não seja de todo o mesmo na actual conjuntura portuguesa, ainda assim poder-se-á imaginar que o grupo de artistas informalmente reunidos sobre a bandeira desta publicação, ou da plataforma editorial, possam encontrar nos mecanismos de expressão política permitida pela arte, e explorados pelos Suprematistas (e outros movimentos que lhe estão mais ou menos associados pelo contexto), modelos de acção que agora procuram seguir. Essa dimensão terá a ver com um posicionamento crítico em relação ao tipo de circulação cultural que existe na nossa sociedade. A velocidade dos meios de comunicação e das ditas redes sociais leva muitas vezes a um silenciamento do pensamento, precisamente porque a aceleração não permite a reflexão. Ou esta é reduzida somente a um conjunto inarticulado de opiniões súbitas, “likes”, comentários sobre comentários, e pouco mais.

Por isso, não deixa de ser surpreendente, e bem-vinda (com a excepção do 1º número), uma dimensão ensaística tentada nestas páginas. Para além de um texto sobre fanzines e a sua cultura (no número 2), que tem tanto de elementos já repetidos em tantas outras ocasiões por tantos fanzinistas como informações mais pessoais e algumas observações mais especificamente originais – uma certa honestidade sobre o alcance destas publicações, mas igualmente sobre a efectividade do seu posicionamento político – são apresentados como que “dossiers” em torno de bandas musicais sobretudo numa perspectiva que une a dimensão sonora à visual. Os textos são de Tiago Baptista e começam de formas idênticas, mas as próprias bandas revelam afinidades entre si: os Laibach, os Crass e os Swans. Todas elas devedoras de um posicionamento extremamente crítico à cultura do tardo-capitalismo que se vê confrontado com esta mesma linguagem das publicações, e os trabalhos que veicula. Além disso, não são propriamente “novas” (bem pelo contrário, até poderão ser vistas como “nostálgicas” para alguns de nós), o que revela desde logo a relação com o tempo instituída pela Preto no branco.

Quanto ao “nosso” território... Encontraremos bandas desenhadas de autores tais como o próprio Tiago Baptista, André Pereira, Marco Mendes, Filipe Felizardo, Hetamoé, Amanda Baeza, Zoran Jovic, Francisco Sousa Lobo, José Lopes, e desenhos soltos ou em ciclos de Ana Biscaia, Tiago Borges, André Lemos, mais ilustrativos, digamos assim, e de Catarina Domingues, mais próximos de um certo circuito das artes visuais. A participação de Sara & André, João Fonte Santa, por exemplo, demonstra as ligações a esse circuito, para além da “ponte” que Tiago Baptista, de certa forma, pressupõe (ainda que não “represente”). Mais, no caso das bandas desenhadas, esses trabalhos foram alvo ora de reedição noutros formatos, colectâneas ou antologias, ou já vinham de publicações anteriores (sobre algumas das quais já havíamos dado conta). Catarina Domingues, a outra editora do projecto, é também cultora de várias publicações a solo que reúnem desenhos em articulação ou não com textos ou conceitos que presidem às escolhas editoriais, em títulos tais como Carta sobre a névoa, Nuvens e Recordação (todos disponíveis no blog do selo editorial – é nele ainda que encontraremos o outro zine de Baptista, Cleópatra, por exemplo) Mas há ainda poesia, poesia espacial, e trabalho de colagens, mail art (?) e manipulação fotográfica, algumas dessas prestações devedoras de uma qualquer referência do mundo artístico, outras procurando caminhos mais solitários.

Nota final: utilizámos as cópias da Oficina do Cego, e agradecemos a F. A. pela oferta do vol. 4.

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