29 de janeiro de 2015

Quatro monografias académicas.

Conforme informámos no texto anterior, a produção acelerada e exponencial de volumes académicos em torno de todas as dimensões passíveis de estudo da banda desenhada tem-se tornado demasiado intensa e complexa para podermos dar conta dela de uma maneira equilibrada. O que se desejaria, e foi feito até à data, era uma leitura cabal, pelo menos, dos livros, acompanhada por uma atenção rigorosa, uma memória e associação à tradições e discussões similares ou complementares, para depois se devolver ao leitor uma compreensão dos argumentos, uma descrição das estruturas e, onde pertinente, apontar os pontos cegos ou sublinhar as grandes forças. Enfim, cumprir aquilo que George Steiner dizia ser a tarefa do intelectual, que era ler um livro de lápis na mão.

Todavia, essa tarefa vê-se agora drasticamente diminuída pela entrada massiva de livros que nos interessaria conhecer com maior intimidade, e pela falta de tempo. Assim sendo, procuraremos dois caminhos alternativos. Por um lado, procuraremos angariar o apoio a investigadores e/ou leitores críticos com as capacidades necessárias para esse tipo de leituras. Isso foi brilhantemente cumprido por Ana Matilde Sousa nos livros sobre mangá e animé, e já se encontram a lavrar outros artigos por outras pessoas. Por outro, faremos apenas apresentações gerais, senão mesmo superficiais, de alguns desses livros, pelo menos pour prendre date, esperando que possam existir mais desenvolvimentos adiante.
Comecemos, então, com quatro livros dedicados a artistas singulares, também escritos por autores individuais. (Mais)

Miyazaki's Animism Abroad. Eriko Ogihara-Schuck (McFarland) O papel de Hayao Miyazaki na história da animação japonesa é inegável, e é muito provável que esse papel possa ganhar uma importância igualmente significativa na economia global desta arte, não apenas no que diz respeito a aspectos estéticos – suspendamos as considerações vocais das comunidades de fãs -, mas igualmente no que diz respeito a atitudes éticas e políticas das possibilidades da animação mais comercial no círculo dos temas, as responsabilidades técnicas, e uma certa abertura ao diálogo multicultural e de construção de identidade que ela pode permitir. Temas os quais, aliás, são centrais na sua obra. “Corrigindo”, de certa forma, a ideia de que o meio da animação não poderá ser “realista” por não “gravar” a realidade através da câmara, a autora procura uma outra maneira de entender essa palavra, realismo, num sentido, em primeiro lugar, demiúrgico-narrativo (“criar-se um mundo”) e, depois, reflexivo (em que medida esse mundo reflecte o nosso).

Seja como for, o foco principal de Ogihara-Schuck é o de estudar os temas da religião, espiritualidade, e com maior detalhe o animismo nos animés de Miyazaki (associando-se assim a um crescente número de obras que juntam estudos religiosos e estas linguagens da “cultura popular”). Além disso, esse estudo é menos concentrado numa questão textual do que receptiva. Quer dizer, a identificação de temas “espirituais” ou mesmo do “animismo” distinto do Japão nos filmes realizados, escritos ou produzidos por Miyazaki, como Sen to Chihiro, Princesa Mononoke, Pompoko, etc. é menos importante – pois fácil até certo ponto – do que a compreensão de como eles foram entendidos e integrados por públicos globais. O estudo elege os públicos norte-americano e alemão, servindo assim a um propósito comparativista, e o filtro da Disney em relação ao primeiro foco é indelével e altamente transformativo. Uma das consequências é notar que, no caso alemão, há uma maior “compreensão construtiva de um sistema de crenças estranho” (191). A negociação, a um primeiro nível, entre o animismo e o cristianismo dos públicos e, a um segundo nível, e os modos de tradução (palavra que aqui tem mesmo de ter um sentido polissémico) de cada país leva a que haja diferenças significativas e sensíveis, aqui analisadas. Para começo de conversa, a tradução por “espíritos” de toda uma série de entes divinos que têm o estatuto de “deuses” na mundividência politeísta japonesa joga mais a favor da perspectiva monoteísta ocidental do que num respeito igualitário da cultura original.

O livro está dividido em três capítulos, que elegem conceitos concisos para perseguir as questões colocadas: a relação entre animismo e monoteísmo através das catástrofes representadas; a recepção diferenciada propriamente dita, passando por formas de publicidade, tradução, edições, etc.; e a relação entre a visualidade e a inscrição social em grupos religiosos ou não-religiosos. Mesmo em aparentemente pequenos pormenores, como “apagar” a mãe-divina de Ponyo do mapa de personagens ou a deslocação do protagonismo feminino de muitas das personagens (Mononoke, Nausicäa, Satsuki) é extremamente revelador das formas como os “textos” são compreendidos em outras culturas que não a original, o que torna muito difícil aquelas frases que ainda hoje são esgrimidas como verdades inamovíveis, de que estas linguagens são, em si mesmas, essencialmente, intrinsecamente, “universais”, “simples”, “transparentes”, etc.

Wallace/Wally Wood. Si c'était à refaire... Guillaume Laborie (P.L.G.) A editora P.L.G., que conhecemos neste espaço graças aos livros de Renaud Chavanne, possui um catálogo cada vez mais substancial no que diz respeito a pequenos estudos monográficos sobre autores que têm feito a história da banda desenhada mais clássica, nesta sua colecção intitulada “Mémoire vive”, mas procurando navegar águas bem diversas. Desde autores de maior sucesso crítico e até comercial até mestres contemporâneos da banda desenhada francesa, passando por autores estrangeiros ou sobre temas mais abrangentes de representação. Falaremos aqui de dois volumes, deixando um sobre Moebius para uma oportunidade futura.

Wally Wood deveria ser uma referência mais constante, mas tendo em conta a sua presença em colecções mais antológicas e arquivísticas, poderá tratar-se de um nome menos imediato junto a um público mais jovem. Prevendo-se uma nova biografia ainda este ano em língua inglesa, possivelmente “definitiva”, este livro poderá tratar-se de uma excelente apresentação, que não apenas discorre sobre a vida como sobretudo da sua produção artística, como não pode deixar de ser. Todos os livros desta colecção, as monografias pelo menos, apresentam-se sempre constituídos por capítulos curtos mais ou menos concentrados ora num período ora numa questão, procurando assim uma leitura rápida e simplificada. Este volume em particular, porém, apresenta-se com uma abordagem algo mais densa, completa e com uma absolutamente sólida ancoragem à bibliografia existente sobre Wood, já para não falar de Wood.

Tendo sido um autor que atravessou períodos fundamentais na transformação do mainstream comercial da banda desenhada norte-americana, trabalhando nos mais variados géneros (ficção científica, policial, guerra, erótico, senão pornográfico, comédia, horror, super-heróis, infantil), formatos (comic books, tiras de jornal, revistas, projectos que se poderiam chamar de proto-graphic novels ou proto-alternativos), e tendo colaborado com tantos outros grandes nomes dessa área (Will Eisner, Harvey Kurtzmann, Jack Kirby, Joe Orlando, Al Williamson, Stan Lee, Roy Thomas, etc.), não é de admirar que a consideração desse percurso atravesse igualmente as ramificações e comunidade criativa mais alargada na qual se integrava. Artista verdadeiramente incansável, pelas circunstâncias do mercado a que pertencia, mas igualmente uma figura trágica e insatisfeita, este é um volume muito informado que mostra os modos como a criatividade passa muitas vezes por uma intensa negociação com o que rodeia um autor.

Lectures de David B. Jean-Marc Pontier. (P.L.G.) Este outro livro já se apresenta como um volume mais concentrado e, contrastando com a “integração” de Wood, sendo um autor mais “isolado”, os capítulos acabam por se revestir de uma natureza um tanto ou quanto impressionista. Apesar da lista bibliográfica completista no fim do livro, os capítulos estão antes divididos por áreas temáticas (“O império dos sonhos”, “A morte”, “A aventura”, etc.), as quais vão sendo identificadas e estudadas como fios vermelhos que atravessam os variados títulos do autor francês, sejam estes produzidos nos primeiros passos algo titubeantes na indústria mainstream francesa, seja no seio da emergente cena alternativa dos anos 1990, seja depois nos mais tardios diários de viagem, ensaios ou os projectos mais “comerciais” e “tradicionais” tentados um pouco por todo o lado.

David B., a nosso ver um dos autores fundamentais, central mesmo, para ancorar a autobiografia como um género válido e maior na banda desenhada contemporânea, e inventando mesmo alguns modos de pensar as potencialidades da expressividade autobiográfica (em breve daremos conta de um artigo académico da nossa lavra sobre este assunto), encontra aqui não tanto um coroar finalizado, mas um sólido contributo para a contínua e aturada reflexão sobre a sua obra, ainda em construção. Copiosamente ilustrado (até mesmo mais que o volume sobre Wood), e sem perder jamais a potente presença do chiaroscuro do autor, e brilhantemente (ou seria expectável?) argumentado de que se trata tão-somente de mais um avatar da legibilidade coroada pela “linha clara”, isso também contribui ao cômputo final da diminuição do texto (até a fonte é maior do que no livro sobre Wood), mas isso não significa que nessas notas de leitura não encontremos pasto para futuros desenvolvimentos analíticos ou diálogos de intepretação.

Sfar so Sfar. Fabrice Leroy (Leuven University Press) A LUP lançou há pouco tempo uma nova colecção intitulada “Studies in European Comics and Graphic Novels”, cujo primeiro volume abordaremos num texto futuro e que servirá seguramente de âncora-máxima a projectos futuros, internacionais. Os estudos que se seguem, e este em particular, são mais focados em artistas e/ou temas específicos, e nascem directamente das discussões esgrimidas no círculo académico, isto é, diferentemente dos projectos de maior divulgação da P.L.G., mas mesmo assim concentrados nos saberes específicos da área.

Este volume é, coincidência, dedicada a um dos colegas principais de David B. na aventura da L'Association, apesar de Sfar não ter pertencido aos sete membros fundadores. É nessa casa que o autor tentou os seus primeiros projectos de maior fôlego, e alguns dos seus personagens mais duradouros, se bem que estas possa desaparecer durante largo período e o autor se lance a novos projectos (jamais terminados) várias vezes, assim como ao seu livre (senão confuso e explosivo) projecto autobiográfico. Cultor de um estilo a que chamámos várias vezes, neste mesmo espaço, de “caligráfico”, há uma certa urgência e fluidez no trabalho de Sfar que o aproxima de uma discursividade muito livre que é alvo de estudo neste volume. A união dessa celeridade material aos temas explorados por Sfar tornam-no apto a transformar a banda desenhada num espaço de reflexão constante sobre o Si, o mundo, e questões filosóficas, metafísicas, de referências culturais e, claro, sobre o acesso aos prazeres da vida, sejam estes a música ou pura e simplesmente o sexo.

Este livro tem um carácter ensaístico, mas muito bem dirigido, tendo tido alguns dos capítulos vida própria e autónoma anteriormente, o que permitiu ao autor um diálogo mais vivo com a comunidade de investogadores. Assim, o judaísmo, a sexualidade, a relação com a história (ou o historicismo), a intertextualidade e as relações interartes, o fantástico, etc., são apenas alguns desses pontos estudados e analisados por Leroy. Conforme o caso, o autor centra-se num número específico de obras, focando assim os seus instrumentos, mas num arco final englobando quase toda a sua obra [também ela, esperamos, em plena corrente de construção, até mesmo em multiplicação noutros meios, como a animação, o cinema, etc.].

Desde questões de identidade na sua formação até às relações políticas do seu trabalho integrado na paisagem editorial francesa (fala-se da sua colaboração com o Charlie Hedbo, por exemplo, que se tornou agora assunto sensível e recorrente), passando por micro-leituras estéticas e éticas do seu trabalho, este é um volume bastante completo, e complementado por uma longa entrevista, apresentada no final.

Nota final: agradecimentos às editoras respectivas, pela oferta dos livros.  

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