18 de janeiro de 2015

Zombie. Marco Mendes (Mundo Fantasma)

A obra de Marco Mendes merece esse mesmo descritivo. Não se trata de uma sucessão de livros que se vão acumulando nas estantes, e que poderão angariar mais ou menos atenção de certos círculos, afectos à banda desenhada ou mais abrangentes de outras esferas culturais. O mesmo ocorre com as pequenas peças que poderão surgir nas mais diversas publicações, desde os mais humildes fanzines a antologias internacionais. É que cada passo de Mendes contribui para um mesmo fluxo, uma mesma pulsão e hausto, que nos faz revisitar o passado. Não é apenas um projecto autobiográfico. Não é apenas um projecto de banda desenhada madura e relevante para além de questões de imaginário ou tecnicistas. É um projecto político, de uma voz singular. (Mais) 

Como repetimos em ocasiões anteriores, sobretudo em torno do Diário Rasgado, a esmagadora maioria do trabalho do autor é constituído por pequenas tiras, usualmente de uma página apenas, oblonga, de quatro vinhetas, as quais são passíveis de serem consideradas unidades autónomas, mas que também existem enquanto fragmentos to tal fluxo maior. Por comparação à obra de Edmond Baudoin, também a consideramos uma espécie de “Poema contínuo”, como poucos autores cultivam, se bem que recentemente, a insistente obra e diversificada de Francisco Sousa Lobo faça emergir muitas questões similares. Contrastivamente, contudo, Zombie não segue essa forma: esta é a primeira vez que o autor cria uma história longa, linear, coesa e fluida ao longo de 49 pranchas (mais uma), e, consequência inevitável, há uma maior unidade de tempo, espaços, protagonistas e tom do que nas colecções anteriores.

O livro começa com o Marco do livro (isto é, o protagonista do livro, destrinçando-o do autor empírico) a ser conduzido pelo pai para visitarem uma mulher num hospital, possivelmente a mulher do pai, com alguma doença grave, mas que se vai aguentando. A curta viagem com o pai permite que ponham a conversa em dia sobre a precariedade do trabalho de Marco, os pagamentos baixos mesmo no interior de um emprego “prestigiante” (professor de ensino superior), e o seu envolvimento com acções a que chama “subversivas”. O pai está algo reticente em relação a essas acções, promovendo desde logo a introdução de uma dimensão que sempre esteve presente no trabalho de Marco Mendes, e que neste livro em particular ganha uma fulanização maior do que nos anteriores projectos, e que, ainda, associado à dimensão do seu envolvimento com o projecto Buraco (isto é, convidando a leituras transversais e cruzadas entre vários projectos) se abre a uma dimensão da “política” enquanto espaço de expressão, como já havíamos discutido sob o signo de Jacques Ranciére. Recordemos que essa dimensão é possível de interpretar mesmo em imagens singulares do autor.

Depois disso, segue-se a tentativa de Marco, na Figueira, tentar contactar várias amigas, numa espécie de desespero pela sedução. Almoço com a família, boleia com um amigo (o Didi de livros anteriores e do tempo dos fanzines d’A Mula), um encontro para jantar com amigos no Porto, e uma saída nocturna, que passa pela tal acção subversiva – pintar esqueletos numa imensa Dança Macabra espalhada pela cidade -, embater-se com um grupo de praxes académicas, uma saída nocturna bem regada e dançada, e um fortuito encontro com uma amiga, já na madrugada, mas que se coroa com um encontro sexual, seguido de uma partida melancólica.

Escusado será dizer que seguimos aqui todas aquelas informações disponibilizadas no próprio texto e que, mesmo compreendendo o filtro autobiográfico pelo qual são apresentadas, nada permite que possamos confirmar se se trata de uma “verdade judicial” – esteve ou não o senhor às x horas neste local? Passou ou não a noite com y?, etc. – nem que tal seja pertinente. O peso da “autobiografia”, neste caso em particular, e de novo, tem um significado de efeito de intensidade junto ao leitor, e não de falsa intimidade entre este e o autor empírico.

Curiosamente, esta estrutura narrativa, ou pelo menos uma sua compreensão possível poderia convidar a um estudo comparatista com um importante romance português, de Nuno Bragança: Directa, de 1977.

Há uma dérive urbana, noctívaga, ininterrupta, contínua em Zombie que espelha em parte a de Directa, mas se no romance há como que um fito central, um objecto de atenção e tensão narrativa, no livro de Marco Mendes esse movimento segue mais um ritmo livre, à bolina dos vários momentos acumulados: os encontros sucessivos, os pequenos desvios que cada um proporciona, e que ao mesmo tempo permitem que se conduza a um olhar particularmente estratificado, social e culturalmente, da vida no Porto. E se existem particularidades dessa cidade, as suas consequências de discurso politizado espelham a situação actual no país, senão mesmo para além dele, como resposta a uma espécie de desalento alimentado pelas consequências do tardo-capitalismo aliado às forças políticas vigentes.

Ao contrário do livro de Bragança, não há nenhuma nota ao leitor ou prólogo, se excluirmos a imagem que surge antes da história, uma cena que sangra a toda a superfície do papel, de Marco desenhando num dos miradouros do Porto, possivelmente com alguns dos seus formandos de desenho (como já havia sido explorado em Diário Rasgado). Essa cena, porém, não tem um elo imediato com o que se seguirá. Sem quaisquer âncoras temporais ou espaciais, simplesmente somos introduzidos à acção, acompanhando Marco e o pai. Não existem jamais quaisquer identificações inequívocas ao longo do périplo do protagonista, o que nos obriga, enquanto leitores, a criarmos as redes de ligação entre as várias personagens e os espaços percorridos. O facto de existir também uma clara dimensão autobiográfica, ainda que mais “disfarçada”, no romance de Nuno Bragança, não é de somenos importância nesta hipotética aproximação.

Não é de forma alguma inédita no autor esta estranha equação entre uma “vida privada” e uma “posição política”. Também em Diário Rasgado existia um foco secundário (até em termos numéricos) nas suas relações amorosas, com a “Lili”, intercalado com acontecimentos de testemunha social: em torno dos sem-abrigo, da precariedade, da pobreza, dos discursos políticos, etc. Mendes não está interessado num discurso politizado sob a forma panfletária ou ensaística, à la Squarzoni, Sacco, ou mesmo como alguns dos seus companheiros na Buraco procuram tecer os seus trabalhos. Não se trata aqui de criar uma hierarquia entre esses trabalhos tão díspares, mas simplesmente compreender os diferentes mecanismos. Por exemplo, se existe um foco inevitável no Marco, há aspectos que poderão fazê-lo cair fora de uma simpatia imediata, como a aparente sofreguidão algo adolescente em procurar sistematicamente companhia feminina, mesmo sob o aparente afastamento da personagem “Maria”, citada várias vezes, mas aqui longe do plano presencial. Tudo isso funciona como uma espécie de peso real, de efeito de realismo para depois providenciar um foco testemunhal, e quiçá de resistência, aos temas políticos que surgem, ainda que de forma oblíqua.

Como já havíamos dito numa outra ocasião, os sentimentos demonstrados pelo Marco e pelos seus amigos são aquilo a que a autora Sianne Ngai chamaria de “sentimentos feios”, isto é “sentimentos menores e usualmente desprestigiantes”, que nada têm a ver com as grandes paixões que movem heroicamente as personagens de grandes narrativas. São sentimentos “explicitamente amorais e não-catárticos” (2005: 6), “sem um objecto claramente definido”. Todavia, é precisamente essa a razão pelo qual “estão mais aptos a produzir ambiguidades políticas e estéticas” como resposta ao estado actual das sociedades tardo-capitalistas,como é o caso português, e a que Mendes claramente responde (para todas estas referências, v. Ugly Feelings, de 2005). É por isso que, no livro anterior, face a um discurso de Merkel, o Didi do livro não contrapõe um argumento lógico e articulado, mas antes se peida. É por isso que na Segurança Social, Marco resolve cantar e fugir pela fantasia. É por isso que se repetem as estranhas deambulações solitárias ou tiras cómico-trágicas em torno da noção de desemprego e precariedade.

“Nunca o uivo do dinheiro se fez ouvir como hoje por todo o planeta”, diz George Steiner na sua conversa com Antoine Spire (Barbárie da ignorância, um “hoje” que remonta a 2000 mas persiste, subsiste e resiste). A sua voracidade, o seu desejo em colonizar toda e qualquer dimensão da existência humana é galopante, e vai impedindo que haja espaço de manobra para que se imagine sequer alternativas a esse pensamento. É “inevitável” (uma das palavras favoritas dos governantes que se querem fazer passar por pós-ideologias). Contra essa inevitabilidade, surgem não tanto acções de paladinos, argumentos audazes com “soluções” e “propostas equilibradas”, mas um arrojo em confessar sentimentos “feios”, que surgem então como pequenas resistências. Se não podemos dizer que haja em Zombie o mesmo tipo de humor desabrido do que noutras ocasiões, ainda assim há espaço para uma negociação permanente entre o humor e a gravidade, o exagero e a sobriedade, e esses mesmos sentimentos.

Regressando por um parágrafo à tentativa de comparação entre Marco Mendes e Nuno Bragança, poderíamos dizer que a prosa inventiva, de ornamento complexo, ainda que não-barroco, do escritor poderá encontrar um eco no plano visual pela escolha de Marco Mendes em criar imagens que são menos do que límpidas e legíveis, e se pautam por uma complexa camada matérica, opaca, quase impenetrável, a qual revela não apenas um imediato prazer no fazer como uma espessura que acaba por incutir uma exigência no significado. Uma espécie de lentidão em beber as imagens. De uma forma mais técnica, houve alguns obstáculos em conseguir digitalizar com maior precisão os desenhos originais, feitos com aguarelas densas, próximas do burilar da pintura, menos do que das artes gráficas, e de “matizes impossíveis”, nas palavras do autor (e que poderão ser confirmadas nas várias exposições programadas, uma das quais abriu esta última Sexta-feira na galeria Abysmo, em Lisboa). Também neste plano há uma distância de Diário Rasgado, que atravessou processos “sujos” de anos a fio, de vários materiais, e de Anos Dourados, de desenhos à vista.

Um dos eventos centrais do livro, se assim se pode dizer, é o encontro do protagonista e uma amiga que o acompanha (nas tais acções subversivas levadas a cabo durante a noite) com uma acção de praxe académica, com os “doutores” nas suas fardas pretas e os caloiros a serem humilhados de formas consabidas. O ensaio final de Samuel Buton, incorporado no livro não tanto como complemento e menos ainda como posfácio, mas como moeda de troca nesta discussão sobre formas de resistência política, foca sobretudo essa realidade social específica, e se bem que a abra a um contexto mais alargado, sublinha a portuguesa.

Por essa razão, abster-nos-emos de tecer grandes considerações sobre esta dita “tradição académica” abominável, já que subscrevemos o texto de Buton, e até mesmo - tendo-nos pautado quando foi altura disso, por esses princípios -, encontrando nestes comportamentos das comissões de praxe tão-somente um mecanismo podre de replicação social das mais reles práticas de humilhação, poder e rebaixamento humano e cultural, já que todos aqueles aspectos positivos que usualmente são apontados são “conversa para boi dormir”. Não se pode aceitar que haja uma necessidade de, por um suposto aproximar humano e solidário, se tenha de passar por comportamentos torcionários. “Inócuos” só o serão considerados por quem não partilha a vergonha que significa rebaixar um ser humano numa qualquer sua condição. Acrescentaremos apenas que esta realidade espelha de uma forma clara os princípios da sociedade corrente, a que os filósofos Foucault e Deleuze chamaram do “controlo”, e Byung-Chul Han de “sociedade transparente”. Este último, aliás, discutindo aquele conceito dos pensadores franceses, aponta sobretudo a atomização e partilha, voluntária, da vigilância. Escreve o autor sul-coreano: “A peculiaridade do panóptico digital está sobretudo em que os seus próprios habitantes colaboram de maneira activa na sua construção e conservação, na medida em que eles mesmos se exibem e despem”. Sob a óptica dessa noção, a participação voluntária nas micro-agressões de todos os dias, sobretudo nestas perfeitamente evitáveis das praxes, a sua replicação contínua, não deixa de ser parte desse contínuo tecido da “construção e conservação activa”.

Não deixa de ser curioso que um dos “doutores” acusa primariamente os protagonistas de serem “comunas de merda”, uma outra resposta pré-preparada e mastigada que nada explica, mas serve aos mesmos que, de boca cheia, falam de “valores”, “tradição” e “inevitabilidade”. De novo, e justificado a essa luz primária, senão mesmo bestial, a tal resistência “feia” em debate no livro.

Curiosamente, há uma imediata reacção, quase de repulsa, ao vermos o texto de Buton impresso de uma forma estranha, como se estivéssemos perante um mero erro de impressão. O texto é apresentado organizado a partir do princípio das duas colunas, mas irregulares e com citações e caixas flutuantes e interrompendo esse fluxo. Além disso, a própria mancha do texto parece mal impressa, aqui e ali, dividindo uma coluna em boa e má impressão, como se houvesse a passagem de um rolo de tinta na diagonal, etc. Porém, será surpreendente saber que não se trata de um erro imputável à gráfica, na sua produção final, mas uma escolha propositada da designer gráfica, Not Wolf. É menos importante compreender a “razão” (para a qual bastaria uma entrevista) do que o “efeito”, que remete de novo à tal espessura e estranha ornamentação a que aventámos acima quando falámos de Nuno Bragança. Como se se esses desvios da legibilidade imediata, da clareza, obstáculos à “invisibilidade” da forma, sublinhasse de forma veemente a sua presença e, logo, às marcas que importam atravessar para garantir a existência de um objecto nas nossas mãos. Quer dizer, são tudo opções que tornam visíveis o texto, no sentido específico que Thomas A. Bredehoft lhe incute num recente livro. Em vez de pensarmos no “texto” (o que, neste contexto, inclui a visualidade da banda desenhada) como uma camada medial que nos veicula um significado, e é ele mesmo transparente, está ali apenas “para comunicar”, bem pelo contrário ganha um peso em si mesmo, obriga-nos a ver (para além de ler). “Ler não é transparente... mas um modo complexo de interpretar o visível”, escreve Bredehoft (The Visible Text).

Quem são afinal os zombies deste livro? Tratar-se-á somente dos caloiros humilhados (a prancha de banda desenhada extra encontra-se no centro do texto de Buton, assim como uma representação de uma manifestação contra a “troika”, vista de uma perspectiva que abarca o cordão policial)? Ou dos “doutores” que replicam o que aprenderam – desvendando assim uma certa falta de inteligência e autonomia humana? Ou serão antes todos os cidadãos que, no silêncio e inércia, “deixam passar”? Ou serão antes aqueles que não vêem, não testemunham, não respondem? No clímax da parte da acção, Marco e os amigos dançam, passionalmente abandonados, aos ritmos de “Zombie”, um dos mais famosos hinos do afrobeat (extremamente politizado em si mesmo, logo não se tratará de uma citação inócua, mas uma reapropriação significante) pelo seu pastor-mor, Fela Kuti, que faz uma aparição fantasmática, extra-diegética, na noite. O excerto da letra transcrita pelo autor é “Zombie no go think unless you tell am to think”, o que serviria, de certeza, de moto a muitos dos cidadãos dessa sociedade criticada pela obra. Mas também, sem dúvida, dos próprios protagonistas, nesse momento de abandono no prazer da dança e da bebida.
Há lugar nessa tal resistência política por este momento de prazer? O autor usa tanto vinhetas bem delineadas entre linhas-moldura, como as apaga ligeiramente, e há um número de balões de fala que ultrapassam os limites. Mas nessa cena de orgia musical e de movimento, a irrupção de Fela apaga a fronteira entre as vinhetas, e os corpos dos amigos, com Elif no centro, torna-a icónica. Uma possível, e excelente, definição de democracia é aquela de Boaventura de Sousa Santos, quando o sociólogo a apresenta como “toda e qualquer transformação de relações desiguais de poder em relações de autoridade partilhada”. Ora se é precisamente nas cenas de torcionários pseudo-académicos que essas relações de autoridade se vêem aqui representadas não como passíveis de partilha mas de confirmação de hierarquias, é nesses momentos de abandono, e da dérive de um dia do protagonista que encontramos uma tentativa, alternativa, sofrida, de colocar em causa esses mecanismos de confirmação de poder.

Nota: agradecimentos à editora, pela oferta do livro, e a D.S.L., pela recordação e associação a Directa

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