27 de abril de 2015

Âama. Frederik Peeters (Gallimard)

Apesar de Peeters ser um autor conhecido pelos leitores portugueses particularmente pelo seu autobiográfico Comprimidos Azuis, que ocupa um lugar de destaque ainda que numa paisagem extremamente diversificada e cheia de obras maiores, ele é também um autor que se dedica a géneros aparentemente mais convencionais, como o da ficção científica ou o policial, para depois estudar no seu interior pequenos desenvolvimentos mais próximos da condição humana. Não pensamos ter de corrigir uma imagem que havíamos imaginado quando falámos de Lupus, a sua anterior saga de fc, uma vez que Peeters, mesmo tendo conquistado uma maior exposição e atenção crítica, precisamente pelo desenvolvimento que se tem esforçado para atingir, tanto a níveis das estruturas formais-narrativas como na prestação do seu desenho, cada vez mais desenvolto e solto (à la Blutch, se bem que não esteja tão próximo da urgência deste último, e esteja mais preocupado na fabricação de objectos), não nos parece ter ultrapassado a ideia de um domínio absoluto dos instrumentos da banda desenhada, mas sem que haja propriamente uma sua refundição. Trabalho magistral, no pleno sentido técnico da palavra, de controlo, conhecimento, domínio e fabricação. (Mais) 

Âama foi uma longa história coesa publicada ao longo de quatro tomos, de 84 pranchas cada um (excepto o último, de 100), entre 2011 e 2014, e tal como ocorreu com Lupus, é possível que venha a ser reunido num só volume. Os títulos de cada tomo foram L'odeur de la poussière chaude, La multitude invisible, Le désert des miroirs, e Tu seras merveilleuse, ma fille. Diferentemente de Lupus e principalmente de Pachyderme, e apesar de tudo, da sua estrutura intricada, o “tema”, por assim dizer, desta história é simples e directo: o amor de um pai por uma filha.

Se em alguns aspectos, as comparações continuadas entre Âama e toda uma série de ficção científica de banda desenhada de um cariz poético, estranho, oblíquo, algo onírico, sobretudo a saga d’O Incal, faz sentido, em termos mais estritamente temáticos (científicos?) estará perto da premissa de um Galáxias como grãos de areia, de Brian Aldiss, com a sua promessa do novo passo da humanidade na escala da evolução. No caso presente, da sua reformulação através das conquistas possíveis (e que não são assim tão fictícias como isso) pela tecnologia computacional e pós-biológica. Âama tem uma intriga intricada (perdoe-se o semi-pleonasmo) que mistura uma trama de investigação policial, investigação industrial, aspectos científicos, as consequências sociais desses avanços e, mais centralmente, um drama familiar. Este centra-se na figura de Verloc, um homem que se agarra romanticamente a objectos arqueológicos que já nenhum préstimo têm na sociedade actual (a saber, livros), tentando viver disso, a crise que atravessa a sua vida familiar com a mulher que dele se separa, levando a filha, e o reencontro com o irmão mais novo, Conrad. Este, trabalhando para uma companhia privada, tem de estudar o que se passa num planeta, chamado Ona(ji), onde parece ter-se perdido o contacto com uma equipa de cientistas, que estuda o titular “Âama”, um projecto que envolve pico-robots que reescrevem a vida biológica, e estudam novas formas de acelerar os processos naturais biológicos evolutivos. Assim, de uma forma velada, dá-se início ao próximo passo da evolução da própria espécie humana.

Neste futuro hipotético, em que todas as pessoas já têm integrados nos seus corpos vários processos tecnológicos, Verloc e a sua mulher decidem ter uma filha à moda antiga, sem quaisquer tipos de intervenções tecnológicas. Lilja, infelizmente, nasce surda, o que lança a crise no seio da família, mas também as desculpas para várias redes de manipulação das personagens.

Dessa forma, todos os elementos conspiram para que Verloc se encontre na superfície de Ona(ji), aparentemente por acaso, mas encontrando aí a razão última da sua missão, e que implicará uma espécie de fusão, através da filha, que afinal se encontra aí, com o âmago de Âama. Mas antes dessa finalíssima apoteose, há toda uma rede de personagens que se vai complicando, tornando cada vez mais intricada a geometria das interacções.

A estrutura da narrativa é algo estranha, o que complica a ideia unidireccional da intriga (que não deixa de existir). Começamos num momento de crise avançada, piorada pela amnésia do protagonista, e é em retrospectiva, através da leitura do seu próprio diário de viagem que lhe é entregue por um gorila robot, Churchill, que descobrimos o que acontecera até esse ponto inicial, sendo esse relato do passado que preenche o corpo central dos livros. Os elementos todos, portanto, se numa primeira fase parecem desarrumados e excessivos, mais tarde ou mais cedo encaixar-se-ão numa ontologia cuidada e coerente. Não estamos perante um projecto tão livre quanto o Pentothal de Pazienza, tampouco a Garagem de Moebius, mas juntamente com Les derniers jours d'un immortel, Distance Mover, Celeste, King City, Prophet , os trabalhos a solo de André Pereira ou com/dos seus colegas do Círculo, e outros títulos, Âama fará parte de uma tendência, se assim for possível pensá-lo, de “weird sci fi”. O que a fantasia da exploração desabrida biológica desta história permite é o abandono do autor suíço na fabricação das formas vegetais, animais, e mesmo minerais (ou deveria colocar o prefixo “pseudo” nessas descrições?) que habitam a colónia visitada por Verloc e o seu irmão, permitindo assim a algumas descrições soberbas das paisagens e do percurso de viagem. Poder-se-ia dizer, nesse sentido, que o objectivo é menos de ficção científica propriamente dita – imaginar desenvolvimentos tecnológicos e os impactos sócio-económicos e políticos que isso implicará, apesar de haver grande explorações nesse sentido – do que um questionamento ontológico sobre a vida, o seu destino e o espaço das emoções nesse cômputo.


Todavia, desenganem-se os leitores que pensarem estarmos perante uma novela de flutuações e ambientes somente. Peeters é um autor que prefere apresentar esses momentos integrados, ou subsumidos, a uma estrutura convencional, cheia de momentos de acção, desenvolvimento de relações entre as personagens, reviravoltas e surpresas, etc. Como nos projectos anteriores, a legibilidade é total, desde o nível do desenho à composição das páginas, se bem que haja curtos episódios, passagens e transições em que se procuram “desarrumações” expressivas precisamente para transmitir esses desvios ontológicos. Nesse sentido, aliás, Peeters está muito próximo de Grant Morrison, que tira partido do mesmo tipo de destruturação aparente da construção planar da banda desenhada para dar conta de travessias entre planos existenciais diferenciados. E, à medida que avançamos, os delírios e transformações internas, sobretudo a transfiguração final, passam por formas mais libertas da clássica ortogonalidade desta disciplina.

Âama é, a vários níveis, um excelente exemplo deste regresso à ficção científica dos anos 1970 que temos verificado na banda desenhada (falaremos em breve de um pequeno projecto de Ricardo Cabral que mergulha de cabeça nestas águas), sobretudo, em que se procuram construir mundos complexos em todas as camadas da existência humana. Não deixa de ser algo linear, apesar da concatenação de informações e linhas de desenvolvimento, e apesar do cerne estar na relação entre pai e filha, não se procuram melodramatismos de qualquer espécie. Bem vistas as coisas, até se pode dizer que mesmo no meio da espectacularidade se mantém um tom calmo de fio a pavio.


Mas é nessa acalmia que a tempestade visual se produz, convidando o leitor a lê-la, também lentamente.

2 comentários:

joemesk disse...


como leitor assíduo do peteers desde de
" brandon B. " tenho que confessar que achei a leitura do remix Otomo/Moebius do quarto volume bastante penosa...

Pedro Moura disse...

Caro Joemesk,
Como havia dito em várias circunstâncias, não penso que o F. P. seja um autor brilhante, totalmente inovador, etc., mas tampouco penso que essa é a melhor maneira de criar expectativas em relação a novos livros. Esta revisitação não é livre de problemas, e o quarto volume parece acelerar e reduzir pela "magia" do ex machina algumas promessas mais ao nível das relações familiares que haviam sido prometidas anteriormente, mas não é uma desgraça total, a meu ver. Mas compreendo as limitações, que podem desencorajar a leitura.
Obrigado.
Pedro M.