11 de julho de 2017

Paiment accepté. Ugo Bienvenu (Denoël Graphic)

“Escolher e isolar constituintes do real, de lhes dar, através de uma estrutura, um sentido, um novo dia.” Esta é umas “confissões de arte” do realizador Bernet, o modo como ele explicita a sua função e visão dos filmes que faz e quer ainda fazer. Independentemente do género, da inscrição temporal, das circunstancialidades de produção do filme, o cerne está, portanto, nestes “constituintes do real”. Paiment accepté é uma espécie de ensaio sobre que elementos se preservam mesmo no meio da perda de controle de todos os meios de produção. (Mais)

A sinopse leva-nos a 2058, numa sociedade não muito distinta da nossa. O protagonista é Charles Bernet, um experiente e galardoado realizador de filmes com alguma recepção crítica mas não de entretenimento, o que torna difícil, ainda, a angariação de fundos para a produção de novos projectos. Aquilo que ocupa o seu tempo presente é um argumento que vem alimentando há décadas, tornando-se quase uma obsessão e necessidade, se bem que nunca se expresse dessa forma melodramática.

Na verdade, as grandes paixões estão quase ausentes no tratamento do livro. Sim, o amor está lá, quer pela arte quer sexual. Discussões sucedem-se, impaciência, inconstância, incompreensões, rivalidades, orgulhos, soberba. Mas há como que uma distância afectiva das personagens operada pelo autor que nos impede de lhes entrar nas mentes e vidas, jamais se formando mecanismos de empatia. Pela proximidade com Charles, elevar-se-á um qualquer grau de simpatia, mas nunca se consubstanciará por um amor à personagem. A crise emocional vai aumentando, em primeiro lugar pela conflituosa amizade com o seu produtor, Donald Junior, as rivalidadezinhas e maldadezinhas domésticas contra a sua mulher, Jeanne, a relação de trabalho mutante e dolorosa com o seu assistente de realização, com todos os envolvidos nas filmagens, e depois atingindo o grande grau de viragem com um violento acidente de viação, que o deixa quase paralisado e encafuado num hospital onde tem de fazer fisioterapia. Durante esse afastamento da sociedade, Charles perde o controlo da realização do filme, o que o empurra ainda mais para uma contínua angústia, que o vira contra todos. Aos poucos, e graças a uma amizade de circunstância com um outro doente do hospital, e através de vários jogos de Scrabble que acabam por se tornar manipulações da sua percepção, Charles regressa à vida.

Descrito desta forma, não apenas se revela a estrutura linear e descomplicada da intriga, como parece tornar-se toda a matéria sem grumos ou obstáculos na sua construção. Mas Bienvenu apresenta estas formas triviais para nelas agregar modos mais matizados de transmitir a essência das relações humanas. Se nos mantiveremos na esfera do cinema, pensemos como Jean-Luc Godard não considera essa linguagem como reprodução da realidade, mas antes como seu esquecimento; porém, um esquecimento que é registado e que, enquanto registo, permitirá então um possível retorno ao real. O livro abre com a última cena do último filme realizado por Bernet. Vamos aprendendo alguns títulos de projectos anteriores, mas não teremos jamais a certeza de qual o registo do seu cinema. Diríamos, todavia, que talvez seja algo que ronde precisamente os textos de uma constelação tão diversa quanto Truffaut, Cassavetes, Panahi, Reygadas... Ou seja, algo que pode beber dos mais variados quadrantes de género mas pretende sempre colocar um realismo cru e ao rés-do-chão da existência das suas personagens.

O novo projecto de Charles Bernet, no entanto, é bem diferente. Parece revestir-se do género de ficção científica, mas no fundo esse é apenas o enquadramento que serve para continuar a explorar as questões humanas que estão no coração da sua carreira. Se nos for permitida uma comparação manca (todas o são, mas servem o propósito momentâneo), seria como reduzir o 2001 de Kubrick ou o Possession de Zulawski a filmes de “ficção científica” e “terror”, respectivamente, esquecendo todas as outras suas dimensões ontológicas, que são bem mais marcantes que esses descritivos. Integradas numa narrativa que se passa no futuro, e com uma quantidade assinalável de objectos fictícios (por agora: carros flutuantes, comboios magnéticos, andróides domésticos, comunicação em holograma, modas futuristas), essa dimensão futurista surge mais como condimento do que como elemento necessariamente estruturador da narrativa. Talvez as tecnologias associadas à produção do cinema neste futuro hipotético sejam mais curiosas: algoritmos que ditam como deve ser o rosto e voz de uma personagem, e que calculam a adequação de um determinado actor; estudos prévios de expectativas de mercado, que apenas aumentam a produção do lado dos produtores, roubando, digamos assim, as intuições e liberdade dos criadores (nada que não ocorra já nos dias que correm em determinados sectores comerciais e industriais do cinema, mas que atingem em Paiment níveis quase caricatos). Mas colocando isso à parte, Paiement accepté é a novela do coração de Charles refazendo-se e tranquilizando-se de novo com o mundo que o rodeia, que continuará a rodar sem ele, e e ele mesmo sem o mundo, se necessário for.

Em termos de figuração, Bienvenu, jovem autor, está no seguimento das escolas clássicas do realismo naturalista da banda desenhada francesa, de um Cuvelier ou Gillon, mas com as novas inflexões de um desenho mais descontraído, ainda que não menos exacto. Até pela temática de um futuro próximo, no qual o conforto material não se coaduna com a angústia humana contínua, diríamos que há algo próximo a Blutch ou P. Peeters. Um dos comentários repetidos desta sua obra tem a ver com a sua cor, que é matizada, variada mas baça, como se se tratasse de uma patina plastificada em torno das suas personagens, e que poderá mostrar mais um elemento expectável do futuro (revelando, pelo menos em parte, a sua larga experiência enquanto produtor e realizador de animação, muitos dos projectos com Kevin Manach, inclusive para a Marvel, com os filmes do Ant-Man).

O autor usa, para quase todas as personagens, rostos relativamente conhecidos de “modelos”. Uma das personagens no hospital é Jean-Luc Fromental, editor da colecção onde este livro se integra. Há um breve cameo de um actor parecido fisicamente com Depardieu. E Donald, o produtor de Bernet, é Donald Trump. Na verdade, esta última personagem surge bastas vezes, e chegamos mesmo a saber partes da sua biografia, havendo elementos suficientes para imaginarmos ser um filho do Trump real. Por um lado, poder-se-ia imaginar que estas inclusões poderiam servir ora de homenagem, jogo, brincadeira, ora mesmo como comentário a situações reais actuais. Mas por outro, essas dimensões não assumem força suficiente para se tornarem pertinentes na interpretação da obra, a nosso ver, e acabam por ser somente um efeito de superfície.

Não sendo uma narrativa melodramática nem épica, nem tampouco uma vincada reflexão do futuro, Paiement accepté é um romance concentrado nas pequenas paixões do seu protagonista, e num percurso simples de redenção perante os demais, mas onde o ganhador principal é ele mesmo.

Nota final: agradecimentos a F.D., pelo empréstimo do livro; imagens colhidas da internet. 

Sem comentários: