Como
saberão os leitores deste espaço, a leitura é feita sobre livros
lidos. Este é um local para leitores, não para promessas de
leitores, pelo que não nos coibimos de tratar as narrativas pelos
seus fins, resoluções ou enigmas desvendados. Não é que o livro
de Manuele Fior se apresente como um enigma, ou algo oculto que se
revele no fim, reescrevendo toda a narrativa tecida até esse
momento, mas há um efeito de organização que permite criar uma
história linear por sobre a história cronológica que se desenvolve
por trechos isolados. Manuele Fior parte de um ponto de partida
clássico, para não dizer cliché – o do triângulo amoroso –
para o explodir pelo tempo, a vida real, o afastamento, formando uma
pequena pérola de estrutura narrativa com os seus elementos. (Mais)
Esta é
uma história cuja sinopse esgotaria quase toda a trama em si. Dois
jovens amigos de infância, Piero e Nicola, vêem a sua rotina e
adolescência interrompida pela chegada de uma nova vizinha, Lucia,
que se tornará rapidamente objecto de obsessão sexual de ambos,
neste momento-chave da aprendizagem desse admirável mundo novo. O
livro pouco mais que 140 páginas de banda desenhada contém, quase
todas oscilando entre pranchas regulares de 2 x 3 ou 3 x 3 vinhetas,
ou variações dessas composições. A esmagadora maioria destas
vinhetas apresenta planos médios das personagens, ora isolados ora
em conjunto. Há também uma insistência em dar a ver generosos
establishing shots,
sem texto, sobretudo no início de cada capítulo, judiciosamente
introduzidos por uma chuva que se inicia, até à chuvada final. Isso
é já um sinal, em retrospectiva, de que todos os capítulos são
afinal tão somente o prólogo para o encontro final entre Lucia e
Piero, ou as causas dessa mesma consequência, ou então as réstias
da memória que sobreviveram nesse ponto de resolução.
Mas apesar
dessa distribuição, a história tem lugar durante uma vintena senão
mesmo uma trintena de anos e atravessando vários países e até
continentes. O título nasce do espaço que afasta Lucia de Piero
numa conversa telefónica. Mas há outro elemento que os afasta, ou
afastou ou afastará. Nicola.
Este é um
livro que pede ao leitor que faça muitas inferências para ir
compreendo a trama da narrativa. Nada de particularmente obscuro nem
difícil, mas não deixa de ser significativa a mestria com que
Manuele Fior vai deixando informações textuais, visuais, emocionais
de modo implícito, fazendo com que os leitores depois cosam esses
mesmos pontos numa tessitura mais densa e complexa. Apesar de virmos
a compreender que Piero e Lucia foram amantes, apenas os veremos a
fazer amor no último capítulo, quando já as suas vidas adultas os
levaram por caminhos bem distantes e divergentes entre si. Aquela
relação entre os capítulos que aventámos acima, sobre a chuva
começando, é assim reforçada ou tornada explícita pela ideia de
que eles fazem amor pela
primeira vez – no espaço
folheado deste livro – apenas
naquele momento, para
nós, tornando tudo o que
está antes numa típica expectativa de amantes.
Não deixa
de ser curioso igualmente que apesar de toda a trama, jamais veremos
Nicola, Lucia e Piero juntos, senão numa única cena, e essa cena é
um sonho de Piero. Paradoxalmente um sonho soteriológico – uma vez
que “cura” Piero da sua febre –, esse sonho, passado numa
paisagem a um só tempo dos locais atravessados e de uma tela de De
Chirico, é no fundo um pesadelo pois dá corpo à dúvida imensa que
o protagonista teve sobre a fidelidade da sua namorada com o seu
melhor amigo. E recordemo-nos como Shakespeare chamou ao ciúme um
“monstro de olhos verdes”, cor que o ladeia e invade nesse
capítulo.
Na
verdade, este é o momento certo de introduzir a questão do controlo
das cores por Fior, talento que já havíamos mencionado quando lemos
o seu Mademoiselle Else.
Cada capítulo está codificado cromaticamente, podendo-se analisar
cada um dos seus jogos particulares para compreender o espectro
ambiental e até emocional em causa nessa mesma parte. O capítulo de
Lúcia na Noruega, por exemplo, começa em óbvios azuis e brancos,
dando a temperatura das paisagens visitadas, que vão dando lugar aos
amarelos e verdes do interior; num segundo momento, mais à frente e
durante a Primavera, os espaços são tomados por rosas e verdes
claros, depois um vermelho mais intenso que se torna a marca do
conflito entre Lucia e Sven. Quando Piero chega ao Egipto, as
paisagens estão saturadas com demasiadas texturas, misturando
vermelhos, ocres e verdes, os quais, invadindo o rosto do
protagonista, o mostram como enjoado. Depois de um breve sonho em que
a cor das areias toma conta de tudo, ele desperta para uma paleta
mais tranquila e sólida. Quando regressarmos pela segunda vez
àquelas paragens, há uma divisão entre um vistoso, saudável e
vistoso verde viçoso e um sólido castanho nocturno. Além disso,
poder-se-iam descrever o primeiro capítulo e o epílogo como tendo
escolhido um glorioso amarelo e o verde vivo como sendo a da presença
de um estio juvenil, intenso, dinâmico e promissor, reforçando o
ponto de partida no final, como uma rememoração do momento mais
alto da relação entre Piero e Lucia, ao passo que o último
capítulo, com os seus pequenos espectros nocturnos de roxos, lilases
e rosas preenche as funções, mais que expectáveis, de um
crepúsculo nas suas vidas e relação.
Cinco
Mil Quilómetros por Segundo
é, também, um livro que mescla duas atitudes perante o amor.
Tratar-se-á de um livro realista, sem ilusões, para adultos na sua
maturidade vivida, que compreendem que nem sempre os ideais e
fantasias da adolescência podem ser mantidos com a vida, as suas
responsabilidades, compromissos, sonhos mortos, e desistências? Ou
será para essa adolescência esperançosa, que agarra a vida de uma
forma completamente entregue e intensa, que acredita que será sempre
Verão? Mais, que vive
esse sempiterno Verão? Mostrará adolescentes que sentem a chuva
aproximando-se? Ou será, afinal, para adultos que não esquecem o
luminoso calor que lhes alimenta ainda a memória, e lhes permite um
amor, ainda que fugaz e clandestino, não por isso menos real, menos
sentido, menos verdadeiro?
Nota
final: agradecimentos à editora, pela oferta do volume.
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