Há algo
de libertador quando somos confrontados com um objecto cuja clareza é
patente e genuína. Uma capa apelativa, clara nos seus propósitos,
apresentando objectos cujo sentidos não exigem uma interpretação
secundária, mas vivem quase de uma presença denotativa absoluta.
Uma mulher guerreira, ostentando duas espadas longas, seguras de
forma marcante, com uma armadura total e, junto a si, um imenso
dragão, de dentes de diamante, ameaçando os seus inimigos fora de
campo. Uma única palavra como título, concentrado e icónico, com
um sub-título que pouco parece adiantar à promessa feita já por
tudo o resto. Sabemos o que nos espera. Aventura de género de
alta-octanagem. (Mais)
John
Cawelti propôs uma teoria dos géneros cinematográficos que se
viria a tornar muito influente quer nos estudos dessa arte em
particular quer noutras áreas contíguas ou comparáveis.
Basicamente, a sua ideia é que os géneros existem sempre numa linha
de tensão entre a inovação e a convenção, não podendo existir
uma sem a outra. Uma obra totalmente “original” (vocábulo que,
de tanto abusado e tornando num conceito empedernido e
sobrevalorizado, perde a sua capacidade explicativa, teórica e acaba
por se tornar somente um fetiche) não poderia, de forma alguma,
encaixar-se num género existente, e as mais das vezes sofreria de um
isolamento feroz. A questão está, portanto, em usar as convenções,
procurando variações significativas, surpreendentes ou que
infleccionem o próprio género numa direcção de expansão das suas
possibilidades. O propósito dos géneros convencionalizados,
formulaicos e populares visa um prazer psicológico basilar humano,
de reconhecimento e padronização.
Os géneros
ou sub-géneros conhecidos como high-fantasy,
heroic fantasy,
sword and sorcery,
ou outras nomenclaturas irmanáveis ou de contiguidade, têm tido
recentemente um recrudescimento na sua recepção popular, graças
quer aos desenvolvimentos técnicos que permitiram uma maior
elegância na apresentação dos seus elementos mais maravilhosos no
campo audiovisual quer ao facto de que essas matérias são agora
apresentadas em canais de forma tão séria quanto outros géneros
dramáticos. Daí se compreenda a glória, se não de crítica, pelo
menos de sucesso comercial e de fãs de objectos tão distintos
quanto O Senhor dos Anéis,
Reign of Fire,
Eragon,
Crónicas de Nárnia,
Guerra dos Tronos,
The Witcher,
etc. Tendo em consideração o trajecto destes dois autores nestes
mesmos géneros - Filipe Faria, nos seus romances, sobretudo, e
Manuel Morgado, na sua presença no mercado comercial franco-belga -,
o regresso à colaboração entre ambos - já haviam publicado antes
Talismã
(Devir, 2006) – é feito não somente com um domínio diferente
pelos dois como numa plataforma mais conducente à sua recepção.
Todos
os ingredientes se encontram presentes. Rituais e obras arcanas,
citadas parcial mas promissoramente. Profecias que servem para
insuflar a acção. Pérolas de sapiência que tanto parece ser
fundamental na cultura como segredos de poucos, conforme a
necessidade. Patronímicos e toponímias de consoantes guturais
(digam rápido “Dragomante Armitaunin de Castro Drago”).
Linguajares que mimam práticas formais e antigas e se afastam da
linguagem quotidiana da nossa experiência. Modos de organização
social altamente hierarquizadas e compartimentadas para depois criar
tensões entre os “individualistas” e os “tradicionalistas”.
Uma mitografia basilar que poderá ser expandida. Famílias, feudos e
pavilhões iconicamente diferenciados. A típica, e profundamente
problemática, estratificação racial e étnica criada entre as
personagens. Heróis cuja soberba, hubris
ou casmurrice lhes augura a queda. Vilões cujo fácies transporta o
ricto que os esclarece num relampejar.
No
entanto, as tensões das vontades autorais notam-se em demasia no
progresso do livro. Não estamos perante um equilíbrio especular e
sustentável entre a imagem e o texto.
Grande
parte dos plot points
são explícitos pelos diálogos, sem haver tempo ou suficiente
elaboração nas acções levadas a cabo pelas personagens. Muitas
vezes, as sensações, emoções ou segredos psicológicos são
revelados pelas palavras, não pelas acções ou expressões das
personagens. Isto torna alguns dos acontecimentos previsíveis, o que
poderia não ser um problema, já que, como dissemos, parte do prazer
dos géneros convencionais é passar pelas etapas expectáveis. O
problema é quando a sua aparição não comporta, no interior do
mecanismo narrativo da história em curso, o mesmo peso ou prazer
emocional, mas tão-somente a mecanicidade da etapa atingida de forma
quase automática. É o que sucede, a nosso ver, quando Nereila
atinge os seus poderes máximos de controlar o dragão. O fogo que
arde nela, por exemplo, recorda por demais o da Fénix de Jean Grey,
mas não observamos qualquer progresso paulatino em Dragomante:
essa ideia é apenas apresentada textualmente e, fora a cena de
introdução, ainda demasiado descontextualizada para importar, não
se volta a consolidar até à sua resolução.
As
relações entre as personagens, também, acabam por se pautar mais
por blocos pré-fabricados do que por personalidades suficientemente
buriladas, e cujas consequências emergiriam de forma mais natural e
implicando a empatia dos leitores. A caracterização é pouco
desenvolvida. Cumprem as suas funções de forma vincada e explícita,
por vezes de sobra, deixando pouco a ser completado pelos leitores. A
quase ausência de um mundo social diverso, pela concentração quase
exclusiva nos protagonistas, leva a que não se compreendam bem as
putativas “lições” de aprendizagem de cada um. E se Nereila e
Ékión se acabam por aproximar, é mais pelo forçoso de terminar a
história do que pela interacção ou compreensão emotiva entre
ambos.
Os
dragões, por exemplo, que tanto parecem ser importantes nas relações
pessoais que estabelecem com os seus guerreiros-companheiros, acabam
por ser permutáveis entre si, sem quaisquer complexidades que não
breves traços superficiais na sua aparência. É verdade que não
estaremos perante um design
à la Marie Brennan ou William O'Connor, ou até James Gurney ou
Vicente Segrelles, mas esperar-se-ia maior desenvoltura na sua
fabricação.
A
arte de Manuel Morgado é apropriada a este género, no claríssimo
arrojo e hábito em construir estas paisagens fantásticas. Uma
figuração algo empedernida, soluções de composição tão-somente
preocupadas com a eficácia directa do que mostram, subsumida à
urgência da narração, sem particular entrega a uma segunda camada
de expressividade estética, porém, ficam algo aquém.
No
spread
constituído pelas páginas 42-43 prometia-se um desdobramento das
acções espectacular e dinâmico. Imaginamos que com transições
que dessem a ver, de forma clara e distinta, o progresso dos
movimentos e de cada gesto do guerreiro: os ângulos de ataque, a sua
queda sobre os inimigos, o desferir e voltejar da espada. Na verdade,
há algo na composição da página, que se lê na horizontal pelo
spread,
que nos fez recordar imediatamente de uma cena de Conan,
pelo elegantíssimo Barry Windsor-Smith, senão estamos em erro
silenciosa, em que o famoso cimério despachava dois ou três
atacantes. Esta seria a oportunidade para demonstrar finalmente os
talentos imensos de Ékión, o escudeiro, temperado pelo seu rito de
elo à dragomante. Infelizmente, cada vinheta apresenta tão-somente
mais um momento distinto, sem clara distinção entre os seus
interpelantes, que surgem somente como peões inertes a ser
despedaçados como toros de manteiga, nem de como as técnicas
avançam (de onde surgiu a segunda lâmina?). Aliás, se Morgado
insiste em vistas espectaculares, poses icónicas e planificações
de pormenor em todo o aspecto materialista deste género –
armaduras e espadas engalanadas, pavilhões ao vento, armaduras com
mais pormenores para o espectáculo que a praticabilidade, entradas
de choque, expressões faciais de grande melodramatismo –, já no
que diz respeito à gestão da clareza dos movimentos, algo fica pelo
caminho. O abuso de efeitos de fluidez (cabelos fulvos a esvoaçar,
sangue a espirrar e pingos mais “expressivos” do que realistas,
linhas cinéticas) e a paleta digital, algo descurada e
excessivamente acentuada, retira alguma da elegância que ainda se
poderia manter.
Na
cena final, como havia sido prometido, revelam-se as encostas de
paragens do outro lado da baía em que estão postados, talvez
expectantes, múltiplos dragões. De novo, têm diferenças
superficiais entre si, mas não o suficiente para encontrar uma
inflexão num mundo draconiano desenvolto e diverso. Dragomante
encosta-se assim ao género a que quer pertencer, mas sem lançar a
sua asa num vento distinto. Veremos quando atravessarem as águas, se
o farão então.
Nota
final: agradecimentos à editora, pela oferta do volume.
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