O autor
apresenta-nos aqui uma pequena intriga digna de um conto
semi-tradicional. Mas como se esses contos, de finais felizes e em
paisagens maravilhosas, tivessem uma continuidade desencantada após
os seus términos consabidos, apodrecessem por dentro e, passado
longo tempo, os seus personagens regressassem aos locais do crime,
dobrados pelo peso da sua amargura, e tentassem recuperar, sem o
conseguir, conquistar alguma da fagulha dessa juventude. Apesar das
suas poucas páginas, e Veras não estar preocupado propriamente com
estratégias primárias de worldbuilding,
ainda assim Jardim dos
Espectros faz emergir uma
unidade espácio-temporal bem mais alargada daquela que tem lugar e
duração somente entre as capas deste livro.
De uma
forma clara, o autor cria o espaço onde decorrerá a acção
principal, que tem tudo de arquétipo mítico: a travessia da
fronteira entre o mundo usual e o mundo maravilhoso, que neste caso
assume a forma do jardim de Núvia, que se assemelha a um cemitério
pagão: ainda que não seja claro se os corpos são ali ou não
sepultados, nem como, em cada árvore encontra-se um objecto, um
ícone, um memento,
que servirá não apenas para recordar o ente perdido, mas também
para lhes ancorar as almas, já que estas, descorporizadas, flutuam
em etéreas e transparentes sombras, como numa segunda vida. Apesar
de não parecer ser uma existência particularmente minaz, mas bem
pelo contrário tranquila, todos parecem afirmar o contrário,
insistindo na sua “maldição” (que jamais compreenderemos que
consequências tem, apesar de algumas frases parecerem dá-lo a
entender). O protagonista ganha direito de entrada e travessia desse
jardim, com o fito de solucionar o problema, e chega mesmo a ser
coadjuvado por uma jovem alma, mas que também, a dado momento, se
recusa de mergulhar no imo daquele bosque.
Jardim
dos Espectros apresenta, sem
dúvida, todos os nichos de função a serem preenchidos pelos
elementos conducentes a uma intriga completa, mas não deixa de haver
alguns pontos incongruentes (o jardim que é um cemitério que é um
bosque ou floresta; a “maldição” que todos juram ser tormentosa
mas que não ganha corpo na acção; os intervalos de tempo a que
todos se referem: “vinte anos de angústia”, mas uma alma-criança
morta aparentemente há mais de cem anos, um protagonista adulto de
que alguém se poderia recordar) ou até irresolúveis. Em analepses
visuais, “descobrimos” o que atormentava o protagonista (a um só
tempo, forasteiro e retornado), o “crime” perpetrado e que lhe
terá custado a família, o seu “inimigo” que ganhou carne, e até
a aparente recompensa na tranquilidade final, mas faltam elos de
ligação que tornassem mais clara a relação entre todas essas
partes.
Há um
limite muito ténue entre deixar-se informação por contar, que leve
o leitor a procurar, por entre aquilo que lhe é apresentado, pistas
para a completação da ideia, e o não se saber à partida, da parte
dos autores, o que será essa mesma ideia. Quando a presença da
informação não é explícita mas é possível criar-se essa rede
de maior finalização conceptual, estamos perante uma excelente
gestão desse equilíbrio. Caso contrário, poderá acontecer um
fenómeno mais perto da confusão e de perguntas que ficam sem
resposta, resolução e satisfação. Julgamos que, após a travessia
deste bosque de almas reviventes, da sua
árvore-coração-espírito-da-culpa, de toda uma população
indecisa quanto ao seu papel em relação ao que os atormenta, nem
todos os leitores estarão munidos de modo suficiente com o mapa que
cartografe a intriga completa.
Fábio
Veras surge-nos aqui totalmente formado, quase como Palas Atena. A
sofisticação do desenho, esculpido em finas linhas sobrepostas e a
um só tempo nervosas e sólidas, recorda-nos algumas das tendências
do final dos anos 1980 com artistas tais como John J. Muth, Kent
Williams ou Georges Pratt. A sua figuração, sobretudo no que diz
respeito aos rostos, é mais estilizada, com claríssimas influências
mais cartoonescas ou da banda desenhada japonesa, mas integradas numa
clássica e alicerçada tradição de composição e storytelling
visual ocidentais. Dada a necessária repetição de representação
do protagonista e da sua jovem deuteragonista, Veras tira partido de
subtis mudanças de ângulo e planos dos rostos, posicionamentos
físicos e micro-expressões dos mesmos, já para não falar dos
inventivos empregos dos claros-escuros proporcionados pela sua
escolha de local. Com efeito, o uso de vários graus de cinzento, de
aguadas, de planos secundários, e do mecanismo narrativo da patina
semi-transparente para as almas retornadas ao domínio dos vivos,
permite ao autor uma gestão das linhas, sombras e transparências
que torna cada página numa experiência visual enriquecedora. Aliado
a todas estas técnicas, a variabilidade da composição, a que
aludimos, é particularmente feliz e dinâmica, sem nunca jamais cair
num mero cardápio técnico, mas antes numa judiciosa variação que
reforça os propósitos narrativos ou emocionais, apesar da
incompletude de que, a nosso ver, enferma o projecto.
Nota
final: agradecimentos à editora, pela oferta do volume.
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