Esta
pequena edição de autor reúne toda uma série de histórias curtas
que estão associadas entre si por uma vontade comum, a de alcançar
e transformar, através de várias estratégias, um fundo dos contos
e tradições folclóricas portuguesas – o que não impede de
arrolar a literatura, com Alexandre Herculano, Jorge de Sena e Zeca
Afonso –, com várias roupagens. Tendo acompanhado o trabalho do
autor há muitos anos, desde os seus primeiros trabalhos em fanzines
no final dos anos 1990, fomos acompanhando estes trabalhos à medida
que foram surgindo, inclusive tendo nós próprios colaborado, tendo
incluído uma das histórias (“A Dama Pé de Cabra”), em inglês
e a duas cores, na nossa própria publicação Quireward. (Mais)
Mas a
reunião destes trabalhos todos num só volume vêm sublinhar a
coesão final e desejada pelo autor. Se cada uma das narrativas pode
ser lida (e foi-o, quando foram publicadas separada e paulatinamente
pelas várias publicações) autonomamente, o seu conjunto assinala o
desejo de querer criar um espaço comum e uniforme. Os elementos
comuns são claros e diegéticos, sob a forma de personagens que se
cruzam ou linhas de intrigas numa história que se revelam numa
outra.
A dama pé
de cabra, os gambuzinos, a coca, lobisomens, e muitas outras figuras
ganham aqui corpos consistentes e visual e estilisticamente modernos,
nua conhecida figuração de Santo, a um só tempo de um grande
dinamismo cartoonesco informado, a um só tempo, por toda uma
tradição da animação clássica, a banda desenhada infanto-juvenil
belga (ali pela Escola de Marcinelle), e dos comics
norte-americanos. Com efeito, a nível da visualidade, o autor é
capaz de criar promessas electrificantes pelo seu composto sentido de
design
de personagens, que o inscreve num território muito alargado,
quentanto poderia arrolar João Abel Manta como David Rubín.
Já no que
diz respeito à narrativa propriamente dita, ou ao storytelling
próprio da banda desenhada, o autor sofre de uma certa “pressa”.
Isto é, existe matéria suficiente para criar páginas de história,
que geridas de uma forma mais classicizante, normativa e, até mesmo,
digamo-lo, “comercial”, poderia dar origem a uma série de livros
apetecíveis ao mercado que se tem formado nos últimos anos.
Todavia, o autor prefere criar grandes blocos de texto sob a forma de
legendas ou balões de fala imensos, e avançar a história pelo
texto, e menos pelas acções, e também de concatenar as acções em
momentos-chave, mas espaçados em termos cronológicos e dramáticos.
Na primeira história em que introduz o Padre Motard, tal como no
prólogo da origem dos Super Pastorinhos, o autor mostra a capacidade
que tem em criar páginas claríssimas, densas de promessa e com uma
calmia diferente. Na cena da “caçada” em “Os Vampiros”, o
autor mostra a sua capacidade de organizar uma acção contida. Mas
em todos esses casos desembocam sempre num desenvolvimento menos
estruturado do que poderia ser, preferindo uma espécie de “fuga em
frente”.
Os
conceitos que Santo apresenta demonstram que não apenas é um autor
plenamente consciente da história dos géneros com os quais quer
dialogar – leitores de Hellboy,
The Invisibles,
Preacher,
entre outras possibilidades de intertextualidade, encontrarão aqui
muitas afinidades – como um autor interessado em ser atento à
realidade portuguesa. Os elementos que compõe estas histórias são
ancorados na nossa terra e entorno: a paisagem, as personagens, a
mesquinhice e a beatice, um pragmatismo casmurro e uma indiferença
ao intelectualismo. E os alvos das críticas mais virulentas do autor
são instituições cujo poder não esmoreceu em 40 anos de
democracia: a pequena burocracia, Fátima e a Igreja Católica, e o
chico-espertismo.
No
entanto, também nessa dimensão espreitam esforços menos elegantes.
Por um lado, o humor de Santo foi sempre corrosivo e iconoclasta, por
vezes mesmo num tom algo juvenil, imaturo. É preciso aceitar, porém,
que esses são instrumentos efectivos para desmontar uma certa
posição bem-pensante que, por vezes, algumas das narrativas de
fantasia tocando os mesmos temas acabam por formar, já que mesmo a
literatura e cinema de terror avançam sempre uma filosofia
conservadora e moralista. Aqui não se encontrará isso, apesar do
título e até, certamente algo que o autor pondera constantemente,
no nome do criador. Por outro lado, algumas das críticas ou das
desmontagens desses poderes são feitas através de um tom algo
condescendente e simplista, o que torna os “vilões” algo
unidimensionais.
Tendo um
formato pequeno, e reunindo trabalhos que, na maioria dos casos,
foram pensados para um formato A4, a leitura sofre de uma legendagem
por vezes cerrada (admitimos, difícil para míopes como nós) e a
escolha cromática é por vezes errática e torna igualmente difícil
a leitura das imagens.
Livro
Sagrado é, apesar destes
escolhos, um genuíno esforço de criar uma série de narrativas
inteligentes e ancoradas na nossa tradição popular, com linhas de
desenvolvimento promissoras, e esperemos que a sua recompensa seja a
continuidade noutros capítulos futuros.
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