10 de agosto de 2018

O espião Acácio. Fernando Relvas (Turbina/Mundo Fantasma)


Pelo que se entende publicamente, a organização desta antologia estava a ser preparada ainda em vida do artista, num momento em que Fernando Relvas se apercebia de duas coisas: por um lado, que não seria provável, devido à doença que o afligia, que voltasse a conseguir desenhar e dar vazão aos muitos projectos que estariam interrompidos, por outro lado, por estar consciente do interesse de vários quadrantes editoriais em “recuperar a memória” da sua própria obra (como gostamos de repetir aqui neste espaço esse trabalho de olhar para trás na história da banda desenhada de forma a consolidar uma tradição a partir da qual novos textos podem emergir). Demos conta aqui de Sangue Violeta, pela El Pep, e Rosa Delta Sem Saída, pela Polvo, que farão parte dessa tendência, a que se vem juntar este novo livro mas que apenas é o corolário da amizade e interesse contínuos e ininterruptos que os editores portuenses nutriram pelo autor e de um gesto que foi por eles fundado, na verdade, quando da edição, já em 1998, pelo SIBDP, do peregrino L123 + Cevadilha Speed. Poder-se-á dizer que é o atempado repescar de um projecto de longa data, num momento em que talvez haja uma melhor recepção e circulação destes objectos. Além disso, as duas exposições relativamente recentes de que foi alvo na cidade da Amadora [uma das quais organizadas por este vosso criado] serviram igualmente como mostra dilatada da sua imensa e variada produção, alguma da qual inédita ou por recuperar nestes moldes. (Mais) 

No entanto, são precisamente esses mesmos moldes que poderão ser algo contra-producentes ou perigosos na nova recepção dos trabalhos antigos de Fernando Relvas. Um recente artigo de Côme Martin, “Quand la série s'enraye: intégrales tronquées et feuilletons interrompus en bande dessinée” vem teorizar e sistematizar uma questão que também abordámos já aqui no Lerbd, inclusive quando discutimos Sangue Violeta. Vivendo num tempo em que a esmagadora maioria da banda desenhada, inclusive a mais popular (o que não significa o mesmo que nas décadas de 1970 e 1980, e menos ainda do que nas de 1910 a 1940) circula sob a forma de códices, livros, volumes, tankobon, “novelas gráficas” e outros termos afins, e não na imprensa, revistas, jornais ou outros veículos, poder-se-á criar a ideia junto aos novos públicos (estes determinados pela idade ou pela recente re-descoberta de que se pode ler banda desenhada em adulto) de que toda a banda desenhada tem como objectivo final a sua existência com esse formato literário e tudo o que daí advém. A ideia do romance não apenas faz flutuar a ideia de um significativo volume de páginas e um nobre formato rectangular com pequenas benesses materialistas (capas, badanas, blurbs, prefácios, coordenação entre colecções, etc.) mas igualmente a de estruturas narrativas internas: centralização de uma intriga, coerência psicológica dos protagonistas, satisfação do arco clássico de desenvolvimento da acção e das personagens, entre outras.

Ora essas qualidades estarão, para sermos simples, “ausentes” de O Espião Acácio. Não poderemos dizer estar perante um romance, sequer uma novela, organizada em torno de uma trama narrativa específica. Não podemos sequer afirmar com total segurança de que Acácio de Mello é o comandante das acções do livro a que dá nome. Não se trata de um herói, mas tampouco de um anti-herói, ou sequer de um herói pícaro, ou outra categoria que esteja já prevista na teoria literária. Ele é tão-somente uma espécie de avatar deslocado das vontades do autor Fernando Relvas à medida que cria estas páginas. Arriscar-nos-íamos a dizer que muito possivelmente haveria momentos em que criaria novas páginas sem ter bem em mente o que havia ocorrido nos episódios anteriores (que nem sequer se podem assim chamar, no fundo) e seguramente que sem se preocupar em demasia com o que poderia surgir mais tarde. Merecendo um tratamento bem mais aprofundado do que esta mera asserção, diríamos que Relvas foi um autor verdadeiramente nietzschiano, no sentido em que a sua “vontade de poder” se sobrepunha à subsunção ou compromisso com classes e expectativas pré-concebidas por fórmulas exteriores. “O Espião Acácio” (entre aspas referimo-nos à série, em itálico ao livro), assim como “Sangue Violeta”, por exemplo, são séries que vivem nesse respeito à vontade autora, numa exploração altamente pessoal da parte do autor, e não de uma pesquisa em respeitar estruturas clássicas, como tentaria noutros trabalhos.

Isto significa que, tal como esse livro publicado pela El Pep, também O Espião Acácio, isto é, o livro, deve ser lido com cuidado, tendo em mente sempre a sua circunstância editorial e liberdade de coordenação, e não somente, ou sequer, como banda desenhada “livresca” propriamente dita... Até certo ponto, esta edição tenta manter alguns dos instrumentos próprios dessa natureza primeira (os sucessivos “fins” ao fim de um episódio de duas pranchas), mas outros estão ausentes (o “continua” entre dois quadrados, por exemplo, mais material crítico, suplementos, etc.). Portanto, este livro reúne a totalidade das pranchas publicadas ao longo da revista Tintin, indiscutivelmente a publicação mais influente da sua dilatada época (1968-1982) e que foi de uma importância fundamental para toda uma geração, ou duas, de leitores, cultores e criadores de banda desenhada, por vários factores: a sua qualidade material, a variedade dos conteúdos apesar de uma maior concentração em histórias do pólo “franco-belga”, cuja noção na verdade ajudou a criar e consolidar já que misturava coisas que, de um ponto de vista dos leitores originais francófonos, eram inconciliáveis (Tintin e Astérix), a sua pontualidade que formaria rituais, a sua capacidade de estabelecer diálogos directos e intensos com os leitores através do correio, clubes e iniciativas e, enfim, a abertura à presença de autores portugueses de uma forma ou outra que Relvas aproveitaria como ninguém, mesmo que de uma maneira algo incoerente.


Relvas não foi o primeiro autor português a ver publicado o seu trabalho na revista. Mas o que surgira antes eram peças desiguais, como as bandas desenhadas semi-publicitárias de José Ruy, particularmente negligenciáveis na carreira desse autor, e o surgimento do “O Espião Acácio” terá sido surpreendente, sobretudo quando, a médio prazo, parecia ter um lugar cativo na publicação. Teríamos de confirmar com maior precisão a seguinte informação, mas estamos em crer que a secção de banda desenhada a preto-e-branco no início e/ou no fim do caderno, reservada a artigos e correio, com a excepção do trabalho de Ruy, terá estreado em torno do ano de 1977, primeiro com O Enigma da Atlântida, de Jacobs, seguido por Signor Spaghetti, de Goscinny e Attanasio e, de uma forma então quase perene, da perspectiva deste então jovem leitor, a série Corto Maltese. Havia portanto a noção de que haveria de uma maneira mais certeira uma “secção” a preto-e-branco, mas de forma alguma presa a géneros ou humores. Seria então que surgiria a série “O Espião Acácio”, de uma forma mais sustentada e contínua. A prancha mais antiga data do Verão de 1978, e a última de Março de 1980, mas não foram publicadas consecutivamente. Houve algumas interrupções da série no ritmo semanal da revista.

Terminada essa série, seguiu-se de imediato (sem interrupção da presença de Relvas na Tintin) a adaptação de Viagem ao Centro da Terra, onde o autor português tentava não apenas uma nova estratégia estrutural e textual da banda desenhada, francamente inferior (quer no que diz respeito à ideia de adaptação, quer de narração, ritmo, etc.) como igualmente uma abordagem visual bem distinta da de “Acácio”, munindo-se de uma linha mais fina, detalhada, cheia de tramas e efeitos. Depois teríamos, em catadupa, “Rosa-Delta-Sem-Saída”, “L123”, “Cevadilha Speed”, “Slow Motion”, e, finalmente, o interrompido “Kriz 3”, por ocasião do término abrupto da revista, no no. 21 do seu 15º ano, datado de 2 de Outubro de 1982. A presença de Relvas era, portanto, um dos pilares constantes da publicação, algumas vezes partilhando o espaço com outros autores portugueses, desde os veteranos aos mais jovens amadores e iniciantes, mas em relação a todos, sinceramente, demonstrando uma mais segura capacidade de burilar a linguagem dinâmica e inteligente entre desenhos e textos.

Graças à inclusão de uma bibliografia no final deste volume, o leitor poderá entender como é que Relvas continuaria a produzir banda desenhada para outras publicações, ora de forma mais esporádica, como na revista especializada em banda desenhada Mundo de Aventuras ou aquela associada ao programa radiofónico Pão Com Manteiga, ou de uma forma mais estruturada, como com o semanário cultural Se7e (erroneamente grafado “Sete” nesta lista). Seja como for, o importante a notar é que, com efeito, é nos anos 1980 que Relvas exerce o seu maior reinado nesta arte, com algumas excepções mais ou menos conseguidas no período seguinte, como o ácido O nosso primo em Bruxelas e o institucional Çufo. Não sendo este o espaço para o debater, diremos tão-somente que nos parece que a esmagadora maioria da sua produção posterior [como The Last Black Ship, por exemplo] sofria de uma incompleta tradução entre a “ideia original” que se haveria plantado na sua cabeça e a sua “execução final”, sem passar por um necessário e aturado processo de desenvolvimento, estruturação e edição.

Uma vez que era uma revista que tentava alegrar a gregos e troianos de todas as idades, seria natural que Relvas pudesse ser mais ou menos satisfatório conforme o género que explorava (ficção científica, fantástico, realismo mágico, etc.) e conforme os interesses dos variados leitores. Todavia, a sua assinatura tornar-se-ia parte integrante das expectativas na leitura da publicação, nesta sua fase derradeira. Mas já em “O Espião Acácio” se notará na mão-cheia de características que seriam a assinatura de Relvas. Uma espécie de escrita que respirava em função da ordem do dia, e não tanto com essa tal clássica planificação aristotélica das putativas intrigas em que jogaria o seu protagonista, não obstante o juízo de valor que acabámos de fazer acima. Uma análise cuidada textual desta série revelaria instrumentos expressivos e categóricos que atravessam géneros distintos. O humor está sempre presente – afinal, esta é a obra de um “maluco! Você é um maluco!” -, mas há flutuações entre períodos de tempo, um verdadeiro périplo geográfico, uma enciclopédia de referências às culturas populares, cinematográficas, literárias e musicais e, claro, um insistente discurso anti-bélico, anti-militar e anti-autoridade.

Estas características eram consabidas e até públicas. Recordemo-nos que no número 44 do 12º da revista Tintin, datada de 15 de Março de 1980, onde se publicam as duas derradeiras pranchas de “Acácio”, e antes de, no número seguinte, saírem as duas primeiras da adaptação de Verne, o assistente editorial, Vasco Granja, se queixava nos seguintes termos: “O chefe de redacção [Diniz Machado] nem quer que eu fale de Viagem ao Centro da Terra. E eu ralado! Que hei-de dizer de uma história da qual ainda não vi uma única imagem?” Uma queixa que não apenas não seria negligenciada por editores de Relvas por vir, como seria um traço herdado por outros artistas da nossa praça, para desgraça dos nervos dos editores... Mas isto serve tão-somente para demonstrar como esse processo criativo não era apenas uma questão do trabalho como se reflectiria na própria “escrita” das séries de Fernando Relvas.

De uma forma simples, digamos assim: Relvas foi um exímio escritor, mas a qualidade da sua escrita não era aquela revelada na construção das intrigas (incoerentes e falhas), ou na consistência das personagens (flutuantes, na melhor das hipóteses), mas antes do modo como os diálogos eram espelho de uma atitude genuína em relação ao rés-da-vida. Se isso se expressará melhor nas suas séries “realistas” (L123, a título de exemplo), está também presente em “Acácio”, nos momentos em que os périplos deste espião de boas famílias e de meia-tijela demonstram ser um comentário em relação quer aos mitos históricos (Lawrence das Arábias, os combatentes das Grandes Guerras) quer aos ficcionais (Darth Vader) quer ainda à realidade imediata do seu tempo e lugar (músicas, a realidade pós-colonialista, e o amor). E até, se quisermos, auto-ficcionais, já que quem senão do próprio Relvas é o Professor Alquimedes o avatar, como possibilidade de comentar a agir no mundo de que ele mesmo é demiurgo?

Então, como ler O Espião Acácio senão obra completa e integral? Que tal como pequenos momentos que captam, como queria Baudelaire, a eternidade na velocidade fugaz do tempo?
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do volume. As imagens foram procuradas na internet, sendo a capa da edição referida, mas do interior directamente das versões da Tintin.

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