Vivemos
num tempo em que, afortunadamente, se discutem muitas questões de
representação e sub-representação sócio-cultural, em todas as
dimensões da esfera pública, na qual se destaca, por razões
óbvias, textos de cariz artístico e produções da cultural
popular. Mas se existem cada vez mais discursos permeáveis e
reequilibrados em relação a toda uma série de categorias e
sub-culturas, a velhice continua a ser uma espécie de tabu.
Velhos
são os trapos, como se costuma dizer, e parece que passado um
determinado limita, as pessoas deixam de ter préstimo, como se a
acumulação das suas experiências não fossem, só por si, uma
muito provável fonte frutífera de aprendizagem aos que se seguem,
sejam essas experiências felizes ou infelizes, de glória ou
infortúnio, boas ou más. A falta de diálogo intergeracional é, na
verdade, uma das dimensões que caracteriza o ensimesmamento actual
nas identidades, estas reduzidas aos seus mais superficiais traços,
sem quaisquer auto-interrogações, dúvidas ou gestos de aproximação
a outras esferas. (Mais)
Estamos
todas bien é um gesto particularmente simples, mas por isso
mesmo revestido de uma importância quase extrema. Ana Penyas, neste
seu primeiro livro de banda desenhada, decide contar um pouco da
história das vidas das suas duas avós, entretecendo as suas rotinas
contemporâneas com troços das suas memórias de infância, primeira
maturidade, e mundos que foram vivendo ao longo das décadas.
Organizado de uma forma fluida, em que navegamos por todas essas
linhas temporais de maneira rítmica e com uma coerência muito
próprias, o objectivo não é tanto criar comparações entre as
avós, mesmo que as semelhanças ou os contrastes ocorram com
naturalidade, mas antes dar a ver a própria atenção e vida
partilhada com a autora.
A parte de
leão, em retrospectiva, do livro, recai de facto sobre as vidas de
Maruja e Herminia. A primeira atenção cabe à avó Maruja, cuja
vida foi marcada por uma carestia significativa, marcada pelos
problemas da pobreza e hierarquias sociais do seu tempo, a mancha da
Guerra Civil, e os preconceitos tipificados dos pequenos pueblos
em que habitou. O seu casamento com um médico local não lhe terá
dado a liberdade – sobretudo de pensamento e alma – que almejava,
e hoje encontra-se ainda presa a rotinas treinadas nessa era.
Herminia provém de um mundo social ligeiramente mais aberto, mas não
necessariamente com maior fortuna financeira e que acabava por se
tornar um outro tipo de espartilho doméstico. Nesse aspecto, ambas
avós são um exemplo normativo do papel das mulheres na Espanha do
pós-guerra e até à contemporaneidade.
Os
afazeres domésticos e o “controlo” que ambas designam para si
nessa esfera, e que guardam com egoísmo junto aos seus filhos e
netos, mesmo compreendendo que as suas capacidades físicas já não
são as mesmas, são um claríssimo sinal do mundo que criaram para
si mesmas, ou que lhes foi imposto pela força das circunstâncias
sociais, e que agora vêem como último bastião das suas
individualidades. As duas passeiam um pouco, têm encontros com
outras amigas, e fazem comentários sobre o mundo todo, compreendam
ou não aquilo que discutem. Ana, através das conversas e, claro, do
que nos mostra como fruto das suas conversas, mas que surgem como
situações pertencentes à “realidade”, vai escavando dessas
superfícies para desejos mais profundos, ainda que seja o leitor a
ter de compreender o seu valor, não apenas quando foram
experienciados, como quando são expostos e como são perenes. Maruja
terá o seu segredo na arte que fazia e vendia, de quadros de flores,
e Hermínia no romantismo e sexo que viveu com o seu marido.
Com
efeito, a própria autora surge de modo tangencial na narrativa para
fazer uma confissão de arte, explicitamente, ainda que dita à sua
avó Maruja, e não num mecanismo metatextual de se dirigir ao
leitor. Numa conversa em que lhe querer escrever a história das suas
avós, Maruja diz-lhe que devia antes escrever histórias de amor.
Mas a neta diz-lhe que “histórias de amor há muitas, de avós é
que não”.
Já
a propósito de outros títulos, falámos de livros que lidam com
protagonistas velhos, e como isso rompe com algumas expectativas dos
géneros em que se inscrevem: Une Plume pour Clovis,
Rugas, Living Will, El arte de volar, cada um a seu modo e suas
intensidades apresentam-nos, a um só tempo, o cansaço sentido agora
e a energia que se guarda nessas memórias, e como as segundas
poderão fazer desaparecer o primeiro.
Abstendo-se
de qualquer estrutura dramática, Estamos todas bien
quer mostrar simples formas de felicidade nesta dinâmica de diálogo
e recordações. O que não quer dizer que ler estas vidas não possa
abrir espaço para discutir outros temas maiores, como a herança da
opressão católica na sociedade espanhola, a duradoura sombra do
franquismo (ainda hoje viva), a dificuldade em acompanhar as
transformações culturais na isolação, os diálogos de surdo entre
gerações, e até aspectos mais comezinhos como a incompreensão da
trabalheira que dá “tratar da casa” por quem não o faz... Ainda
assim, apesar dessas possíveis aberturas, o livro regressa sempre a
um nó caseiro, pequeno, imediato, e suficientemente feliz. Mesmo a
frase do título, compreendida no fecho, tem uma nota melancólica,
mas que não nos deveria preocupar.
De formato
oblongo, com composições simples, e desenhos sólidos que optam ora
por abordagens minimais e estilizadas, ora presenças fortes de
texturas gráficas, padronizações, e colagens de materiais como
jornais, ilustrações, fotos, tecidos, este livro participará mais
de uma combinação de estratégias usualmente advindas do mundo da
ilustração, de onde a autora vem, do que das convenções mais
classicizantes, realistas e comerciais da banda desenhada. A escolha
de duas cores dominantes para cada avó, e a maneira como uma dá
lugar à outra, demonstra a compreensão da artista em que a
construção do sentido não se faz, de modo algum, apenas através
das formas verbais ou mesmo a figuração. A assinatura de Penyas,
caracterizada acima de tudo pela solidez e energia da figuração a
lápis e depois a suavidade da construção do mundo em seu torno,
aproxima-la-á de toda uma série de outras autoras que trabalham
caminhos similares, de Renée French a Sílvia Rodrigues.
Nota
final: agradecimentos a M.T., pelo empréstimo do livro.
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