24 de dezembro de 2015

O poema morre. David Soares e Sónia Oliveira (Kingpin Books)

Imaginemos um Sísifo ao contrário. Não alguém que tenha sido condenado a ter de colocar uma pedra rolante no cume de uma montanha, e veja o seu hercúleo esforço descontado pelo regresso da pedra ao ponto de partida, lá em baixo, mas antes alguém que encontra sempre a pedra no alto e a faz rolar encosta abaixo. Por vontade, e até prazer. Mas ao mesmo tempo sem que esteja totalmente consciente dos gestos que o fizeram empurrar essa pedra, por isso mantém uma certa candura (jamais inocência, porém!) ao ver a queda e a subida. Como se tudo ocorresse fora da sua vontade. Não: é ele o centro das acções. (Mais)

Esta poderia ser, eventualmente, uma descrição do protagonista do livro escrito por David Soares e desenhado por Sónia Oliveira. Um poeta, possivelmente medíocre por ter entendido poder aparelhar a poesia a funções pragmáticas e consentâneas com as reacções do dia, e que tanto se entrega a relações de alguma facilidade como evita conflitos que o fizessem desdobrar-se num ser humano mais completo. Enfim, alguém que se julga impermeável e não vê estar já dentro de um líquido imenso. Este líquido pode-se chamar História, ou vida, ou real. Mas além disso, o livro é também sobre a guerra. Não um conflito particular, e articulado com as notícias, mas em abstracto, tocando as vazas da existência humana. A guerra vista quase como respiração necessária (inevitável? Intrínseca? Inata?) do homem, como ritual e repetente, como uma realidade presente como um nevoeiro permanente.

David Soares continua a explorar aspectos que têm a ver com a abjecção mais negra de que os seres humanos são capazes. Não se abandona o horror, de forma alguma, em O poema morre, mas é curioso notar que estão ausentes os “monstros” de carne e liminares dos livros anteriores (inclusive os romances). Apenas o futuro o dirá, mas é como a curva de transformação interna que se operou no imaginário de Cronenberg, em que o horror carnal e externizável se mudou para o interior do corpo, e as máscaras proporcionadas pelas criaturas fantásticas se eclipsassem para revelarem os verdadeiros agentes do horror.

A atmosfera do livro voga entre o onírico e o pesadelo, a brutalidade e a distracção cómica. Há episódios que poderiam ser vistos como “perversos” mas são apresentados como se fosse apenas uma criança a virar um besouro. E outros momentos em que parece existir candura, mas é precisamente aí que residem as mais densas sombras da maldade humana. As próprias figuras de Sónia Oliveira, esquálidas e glaucas, aumentam essa ideia de titubeante existência, como se fossem espectros de tinta sem grande segurança de assumir papéis fechados. 

O arrolamento daquele cineasta canadiano para falar de um livro de banda desenhada que fala de poesia não é gratuito. Na verdade, é informado por um importante ensaio do teórico da literatura, e também poeta (de circulação circunscrita, porém), Fernando Guerreiro, intitulado “Teoria do Fantasma. O efeito Cronenberg em poesia”, encontrável, por exemplo, em The Italian Shoes (Vendaval: 2005). Difícil que é reduzi-lo a uma ideia ou princípio passível de sumário, Guerreiro propõe que toda a literatura é fantástica, na medida em que qualquer pessoa que passe por um poema, sairá dele alterado, estranhado, após um confronto com o Unheimliche. A literatura é um simulacro, uma “máquina de produzir fantasmas”, espelhando aquela que foi a lição mais radical de Freud: a de que dentro de nós habita o derradeiro estranho. Dessa forma, haverá obras talvez mais fantásticas do que outras, dizemos nós, conforme nos fizerem confrontar de forma mais premente com esse mesmo estranho que nos habita, que nos constitui mesmo, sem que o saibamos. Essa estranheza é, todavia, a produção de mais real: de uma natureza outra, alternada, futura.

Esta dinâmica de passagens, travessias, trocas e entradas e saídas em novos espaços (um tema recorrente em Soares, passível de análise sob o conceito da “liminaridade”) está patente na biografia destas personagens: o protagonista é órfão de guerra (presumimos, assim como a ordem dos eventos, já que o desarranjo cronológico da narrativa, e a ambivalência das informações e alguns episódios impedem uma navegação clara total) e depois de passar por uma casa de gaiatos é adoptado por um coveiro que já tem uma filha, com a qual enceta uma relação sexualmente precoce e, portanto, semi-incestuosa. Apesar das vicissitudes pelas quais atravessará, parece manter uma relação com essa sua “irmã”, que passa pelo cariz sexual, e independentemente do que lhe paga as contas do quotidiano, a poesia será empregue em serviço da nação (não há nomes próprios, a não ser o da criadinha Uschi, que sendo alemão não ajuda a qualquer ancoramento referencial: O poema morre passa-se aqui e lá, na Europa e alhures, ontem e hoje, por todo o lado e sempre). O protagonista também “passa” pelas relações, e elas nunca se cristalizam, há sempre um movimento, de penetração de espaços estranhos (o que é entendível não-metaforicamente em termos sexuais, corpóreos).

A irmã, mutilada, é menos que o corpo perfeito aristotélico, mas por isso conduz a um desejo também ele deslocado, liminar, oblíquo, inclinado. Fronteira e promessa de informe, esse corpo é apenas símbolo de outras relações presentes na narrativa: os enforcados do Estado em praça pública, a humilhação fecal do protagonista pelos colegas do orfanato, o assassinato do cão por garotos, o trabalho infantil com o coveiro, as violações da rapariga e depois de um dos garotos, os bombardeios que estilhaçam os corpos e derrubam edifícios.

Regressando a Guerreiro: na irmã enquanto palco de representação reside “esse estado da matéria em que se confundem os estados de vigília e de sonho, o orgânico e o inorgânico, a morte e a vida”. Espaço transitório, límbico, que enquadra todo o texto (e está nas capas, criando em simetria um Monte - leiam-no como mágico, Análogo, Omphalos do Érebo). A substituição de um poema por outro, de uma amante por outra, de um crime por outro e por outro, são outros ecos dessas transições.

Ao contrário de outros livros de Soares, as personagens desta obra parecem partilhar uma mesma linguagem. Os seus registos, vocabulários densos e engalanados, são algo indiferenciados entre si, oferecendo um tom de teatro, artificialismo, uniformidade a todas as personagens. Uma linguagem que bascula desde níveis quase nefelibatas, metafísicos, poéticos, e depois desce ao mais chão e descarado dos impropérios, muitas vezes associado à urgência do sexo ou da violência. O próprio trabalho de legendagem, de Mário Freitas, optando por uma igualmente esquálida letra, tremente como um moribundo, fazendo "estremecer" - de frio, receio ou debilidade - as vozes destas personagens, que como pessoa parecem "cadáveres adiados" num sonho negro, assinala essa natureza. Todavia, é precisamente com essa espécie de camada de distanciamento, contra um suposto realismo enquanto bitola a atingir, que esta teatralidade de O poema morre se se insurge de forma efectiva e persuasiva. Regressando uma última vez a Fernando Guerreiro, num ensaio diferente, o poeta e teórico escreve: “a poesia, enquanto estado vibratório do real e da linguagem, pode ser entendida como música (i.e. ritmo): simultaneamente disseminação do real e produção de simulacros”. O simulacro está nesta pequena opereta do livro (a sua transição não é difícil de operar, mesmo que imaginariamente), máquina que disseminará a ideia real do fascínio, senão mesmo busca, pela abjecção, a serventia, a violência, a divergência das relações, o fácil ódio. 

Para a artista, parece-nos haver uma vantagem em encontrar um desafio de um argumento concreto e sólido, no qual as palavras são lavradas com outra intencionalidade maior do que a de “ilustrar” as imagens. Os trabalhos de Sónia Oliveira, a solo, viviam num ambiente de fascínio pelo vago e o indefinido que nem sempre traduziam uma ambição mais moldada. Com a experiência com André Oliveira, por exemplo (razão da “descoberta” de David Soares), e agora com O poema morre, os desenhos da autora ganham a força de um veículo de propósitos mais conduzidos, e por isso ganham uma graça que se traduz menos pela leveza – apesar de ser composto por linhas finas, aguadas, manchas correctoras ou de textura que deixam visível a passagem do pincel e os movimentos do pulso - do que por um peso.

Do outro lado, todavia, também é benéfica para David Soares a “libertação” que se operou em relação ao seu desenho pessoal (das primeiras obras, ainda hoje algumas ponto de paragem obrigatório na aprendizagem da banda desenhada moderna portuguesa), para perscrutar as possibilidades de escrever para outros, e procurando que, na própria escrita, no desenvolvimento do argumento, se contemplem as características próprias dos artistas com quem colaborará, para “escrever através dos seus desenhos”. Não que não exista um “excesso” – de marcas gráficas, de presença estilística – que não escape ao programa previsto do argumento, mas há seguramente uma operação de controlo que parte do acto de escrita. E é nesse “vestir” os desenhos dos seus colaboradores que David Soares inflecte mesmo os seus meios. O caminho do concreto para a abstratização ou fantasmas de Sónia Oliveira é o caminho certo deste relato nebuloso de um poeta preso no limbo.

O poema morre, claro, pois a dimensão poética alcançada pelo protagonista – isto é, os livros deste universo diegético (Um tempo para matar cães e Os mamilos da abelha, o primeiro um “panegírico” e o segundo “um libelo à guerra”, nas palavra do poeta), não a própria poeticidade do livro de Soares e Oliveira – não é de uma natureza que escape à contingência da história. Bem pelo contrário, o poeta persegue a sombra da história e por isso está condenado a viver sob ela e a sofrer as consequências do seu movimento.

O poema morre é uma máquina fechada: começa onde termina, no limbo das palavras do protagonista, que introduz em analepse a “história” que leremos. Lá dentro, o tempo chocalha. É menos importante a navegação clara do que o ambiente e os elementos tópicos, a respiração da guerra. Mas afinal de contas poderemos ler o livro como um simples “libelo à guerra”, como o segundo poema do poeta? “Panegírico” não será, pois não há qualquer ironia, ou sarcasmo, nesta obra. É, sim, a produção de mais real.
Nota final: agradecimentos ao escritor, pela oferta do livro. 

1 comentário:

José Sá disse...

Olá Pedro,

Nem no Natal perdoas :-). Não é pra comentar, deixo a leitura pra depois das festas, só passei por aqui para desejar-te e à tua família uma noite de natal bem desenhada. E aquele abraço, também pra todos os que frequentam o Ler BD.

José