Imaginemos um Sísifo ao contrário. Não alguém que tenha sido
condenado a ter de colocar uma pedra rolante no cume de uma montanha, e veja o
seu hercúleo esforço descontado pelo regresso da pedra ao ponto de partida, lá
em baixo, mas antes alguém que encontra sempre a pedra no alto e a faz rolar
encosta abaixo. Por vontade, e até prazer. Mas ao mesmo tempo sem que esteja
totalmente consciente dos gestos que o fizeram empurrar essa pedra, por isso
mantém uma certa candura (jamais inocência, porém!) ao ver a queda e a subida.
Como se tudo ocorresse fora da sua
vontade. Não: é ele o centro das acções. (Mais)
Esta poderia ser, eventualmente, uma descrição do protagonista
do livro escrito por David Soares e desenhado por Sónia Oliveira. Um poeta,
possivelmente medíocre por ter entendido poder aparelhar a poesia a funções
pragmáticas e consentâneas com as reacções do dia, e que tanto se entrega a
relações de alguma facilidade como evita conflitos que o fizessem desdobrar-se
num ser humano mais completo. Enfim, alguém que se julga impermeável e não vê
estar já dentro de um líquido imenso. Este líquido pode-se chamar História, ou
vida, ou real. Mas além disso, o livro é também sobre a guerra. Não um conflito
particular, e articulado com as notícias, mas em abstracto, tocando as vazas da
existência humana. A guerra vista quase como respiração necessária (inevitável?
Intrínseca? Inata?) do homem, como ritual e repetente, como uma realidade
presente como um nevoeiro permanente.
David Soares continua a explorar aspectos que têm a ver com a
abjecção mais negra de que os seres humanos são capazes. Não se abandona o
horror, de forma alguma, em O poema morre,
mas é curioso notar que estão ausentes os “monstros” de carne e liminares dos
livros anteriores (inclusive os romances). Apenas o futuro o dirá, mas é como a
curva de transformação interna que se operou no imaginário de Cronenberg, em
que o horror carnal e externizável se mudou para o interior do corpo, e as máscaras
proporcionadas pelas criaturas fantásticas se eclipsassem para revelarem os
verdadeiros agentes do horror.
A atmosfera do livro voga entre o onírico e o pesadelo, a
brutalidade e a distracção cómica. Há episódios que poderiam ser vistos como
“perversos” mas são apresentados como se fosse apenas uma criança a virar um
besouro. E outros momentos em que parece existir candura, mas é precisamente aí
que residem as mais densas sombras da maldade humana. As próprias figuras de
Sónia Oliveira, esquálidas e glaucas, aumentam essa ideia de titubeante
existência, como se fossem espectros de tinta sem grande segurança de assumir
papéis fechados.
O arrolamento daquele cineasta canadiano para falar de um
livro de banda desenhada que fala de poesia não é gratuito. Na verdade, é
informado por um importante ensaio do teórico da literatura, e também poeta (de
circulação circunscrita, porém), Fernando Guerreiro, intitulado “Teoria do
Fantasma. O efeito Cronenberg em poesia”, encontrável, por exemplo, em The Italian Shoes (Vendaval: 2005).
Difícil que é reduzi-lo a uma ideia ou princípio passível de sumário, Guerreiro
propõe que toda a literatura é
fantástica, na medida em que qualquer pessoa que passe por um poema, sairá dele
alterado, estranhado, após um confronto com o Unheimliche. A literatura é um simulacro, uma “máquina de produzir
fantasmas”, espelhando aquela que foi a lição mais radical de Freud: a de que
dentro de nós habita o derradeiro estranho. Dessa forma, haverá obras talvez
mais fantásticas do que outras, dizemos nós, conforme nos fizerem confrontar de
forma mais premente com esse mesmo estranho que nos habita, que nos constitui
mesmo, sem que o saibamos. Essa estranheza é, todavia, a produção de mais real: de uma natureza outra,
alternada, futura.
Esta dinâmica de passagens, travessias, trocas e entradas e
saídas em novos espaços (um tema recorrente em Soares, passível de análise sob
o conceito da “liminaridade”) está patente na biografia destas personagens: o
protagonista é órfão de guerra (presumimos, assim como a ordem dos eventos, já
que o desarranjo cronológico da narrativa, e a ambivalência das informações e
alguns episódios impedem uma navegação clara total) e depois de passar por uma
casa de gaiatos é adoptado por um coveiro que já tem uma filha, com a qual
enceta uma relação sexualmente precoce e, portanto, semi-incestuosa. Apesar das
vicissitudes pelas quais atravessará, parece manter uma relação com essa sua
“irmã”, que passa pelo cariz sexual, e independentemente do que lhe paga as
contas do quotidiano, a poesia será empregue em serviço da nação (não há nomes
próprios, a não ser o da criadinha Uschi, que sendo alemão não ajuda a qualquer
ancoramento referencial: O poema morre
passa-se aqui e lá, na Europa e alhures, ontem e hoje, por todo o lado e
sempre). O protagonista também “passa” pelas relações, e elas nunca se
cristalizam, há sempre um movimento, de penetração de espaços estranhos (o que
é entendível não-metaforicamente em termos sexuais, corpóreos).
A irmã, mutilada, é menos que o corpo perfeito aristotélico,
mas por isso conduz a um desejo também ele deslocado, liminar, oblíquo,
inclinado. Fronteira e promessa de informe, esse corpo é apenas símbolo de
outras relações presentes na narrativa: os enforcados do Estado em praça
pública, a humilhação fecal do protagonista pelos colegas do orfanato, o
assassinato do cão por garotos, o trabalho infantil com o coveiro, as violações
da rapariga e depois de um dos garotos, os bombardeios que estilhaçam os corpos
e derrubam edifícios.
Regressando a Guerreiro: na irmã enquanto palco de
representação reside “esse estado
da matéria em que se confundem os estados de vigília e de sonho, o orgânico e o
inorgânico, a morte e a vida”. Espaço transitório, límbico, que enquadra todo o
texto (e está nas capas, criando em simetria um Monte - leiam-no como mágico, Análogo, Omphalos do Érebo). A substituição de um
poema por outro, de uma amante por outra, de um crime por outro e por outro,
são outros ecos dessas transições.
Ao contrário de outros livros de Soares, as personagens desta
obra parecem partilhar uma mesma linguagem. Os seus registos, vocabulários
densos e engalanados, são algo indiferenciados entre si, oferecendo um tom de
teatro, artificialismo, uniformidade a todas as personagens. Uma linguagem que
bascula desde níveis quase nefelibatas, metafísicos, poéticos, e depois desce
ao mais chão e descarado dos impropérios, muitas vezes associado à urgência do
sexo ou da violência. O próprio trabalho de legendagem, de Mário Freitas, optando por uma igualmente esquálida letra, tremente como um moribundo, fazendo "estremecer" - de frio, receio ou debilidade - as vozes destas personagens, que como pessoa parecem "cadáveres adiados" num sonho negro, assinala essa natureza. Todavia, é precisamente com essa espécie de camada de
distanciamento, contra um suposto realismo enquanto bitola a atingir, que esta
teatralidade de O poema morre se se
insurge de forma efectiva e persuasiva. Regressando uma última vez a Fernando Guerreiro, num
ensaio diferente, o poeta e teórico escreve: “a poesia, enquanto estado vibratório do real e da linguagem, pode ser
entendida como música (i.e. ritmo): simultaneamente disseminação do real e
produção de simulacros”. O simulacro
está nesta pequena opereta do livro (a sua transição não é difícil de operar,
mesmo que imaginariamente), máquina que disseminará a ideia real do fascínio,
senão mesmo busca, pela abjecção, a serventia, a violência, a divergência das
relações, o fácil ódio.
Do outro lado, todavia, também é benéfica para David Soares a
“libertação” que se operou em relação ao seu desenho pessoal (das primeiras
obras, ainda hoje algumas ponto de paragem obrigatório na aprendizagem da banda
desenhada moderna portuguesa), para perscrutar as possibilidades de escrever
para outros, e procurando que, na própria escrita, no desenvolvimento do
argumento, se contemplem as características próprias dos artistas com quem
colaborará, para “escrever através dos seus desenhos”. Não que não exista um
“excesso” – de marcas gráficas, de presença estilística – que não escape ao
programa previsto do argumento, mas há seguramente uma operação de controlo que
parte do acto de escrita. E é nesse “vestir” os desenhos dos seus colaboradores
que David Soares inflecte mesmo os seus meios. O caminho do concreto para a abstratização
ou fantasmas de Sónia Oliveira é o caminho certo deste relato nebuloso de um
poeta preso no limbo.
O poema morre, claro, pois a dimensão poética alcançada pelo
protagonista – isto é, os livros deste universo diegético (Um tempo para matar cães e Os
mamilos da abelha, o primeiro um “panegírico” e o segundo “um libelo à guerra”,
nas palavra do poeta), não a própria poeticidade do livro de Soares e Oliveira
– não é de uma natureza que escape à contingência da história. Bem pelo contrário,
o poeta persegue a sombra da história e por isso está condenado a viver sob ela e a sofrer as consequências do seu movimento.
O poema
morre é uma máquina fechada: começa onde termina, no limbo das
palavras do protagonista, que introduz em analepse a “história” que leremos. Lá
dentro, o tempo chocalha. É menos importante a navegação clara do que o
ambiente e os elementos tópicos, a respiração da guerra. Mas afinal de contas
poderemos ler o livro como um simples “libelo à guerra”, como o segundo poema
do poeta? “Panegírico” não será, pois não há qualquer ironia, ou sarcasmo,
nesta obra. É, sim, a produção de mais real.
Nota final: agradecimentos ao escritor, pela oferta do livro.
1 comentário:
Olá Pedro,
Nem no Natal perdoas :-). Não é pra comentar, deixo a leitura pra depois das festas, só passei por aqui para desejar-te e à tua família uma noite de natal bem desenhada. E aquele abraço, também pra todos os que frequentam o Ler BD.
José
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