Para Regalado, os super-heróis são
“seres da imaginação”. Nesse sentido, eles não possuem em si
mesmos princípios ideológicos ou culturais absolutos, mas são
antes figuras que são empregues em vários usos e contextos. Este
autor não olha para estas personagens como figuras salvíficas, à la Grant Morrison, uma vez que entende de modo sério as limitações
intrínsecas às criações da cultura em relação ao poder
sistémico, como ele diz. Sendo a modernidade entendida como uns
grilhões de aço, porém, essas figuras são metáforas “com
criatividade, inteligência, sensibilidade, inclusividade e dedicação
suficiente” para as dobrar (228). Mas para entender os instrumentos
com que o farão, e o modo como têm respondido ao curso da história,
é preciso percorrer os passos para trás e ter uma visão de
conjunto. (Mais)
Este livro tenta um acto de equilíbrio
extremamente curioso. Por um lado, a figura do super-herói é aliada
a modelos literários que a antecedem, e que com efeito criaram o
molde do qual ela sairia mais tarde, sobretudo no que diz respeito
aos traços de masculinidade, individualismo, abnegação em nome da
missão, e questões afectas igualmente à etnicidade, já que os
heróis, preenchendo o papel do “americano ideal”, não apenas
seguem cegamente uma sua noção preconcebida, como a dilatam,
distorcem, transformam e, em última instância, influenciam. Por
outro, ela é estudada na sua vida “interna”, isto é, nos
desenvolvimentos conceptuais e actanciais que foi sofrendo ao longo
de setenta anos de “uso”. Como denominador comum de todo esse
edifício está a ideia de “modernidade” (e, necessariamente, de
“pós-modernidade”), e a maneira como ela dialoga com a realidade
americana: nessa fricção, o super-herói terá um determinado
comportamento, e é isso o que é estudado por Aldo J. Regalado.
O autor, portanto, está menos
interessado numa definição essencialista ou de elementos
constituintes (um trabalho já cumprido por Peter Coogan, por
exemplo), mas antes numa sua descrição histórica, olhando para
raízes recuadas na cultura nacional. Recentemente, surgiram mais
dois títulos afectos à história deste tipo de personagem, a saber,
On the Origin of Superheroes, de Christopher Gavaler, e The
Superhero Costume, de B. Brownie e D. Graydon, sobre os quais
falaremos mais tarde. O primeiro parece focar-se porém em contextos
históricos menos dilatados do que o caso de Regalado, assim como
concentrar-se nos elementos constituintes da figura. O segundo,
elegendo a questão dos uniformes, trilhará decerto um caminho bem
distinto, quase semiótico, de cada elemento que compõe o uniforme.
Os leitores de Comics as Philosophy
já se haviam deparado com um seu ensaio, onde estas questões eram
apresentadas de modo mais sucinto, podendo aqui revisitar uma
argumentação mais desenvolta. Regalado é de facto um historiador
cultural, por isso não encontraremos aqui novamente as anedotas da
criação das personagens, ou as novelas editoriais. Elas não são
colocadas de lado, mas estão presentes somente para sustentar um
discurso que está mais preocupado com os papéis societais que
cumpriram e fundaram. Deste modo, todos os agentes nessa complexa
equação são contemplados: está os criadores e os editores, claro,
mas o autor vasculha igualmente cartas, publicações de fãs,
notícias, etc., para ter acesso à voz dos consumidores, procurando
aí respostas às questões que vai colocando. É possível que
leitores bem informados na origem e desenvolvimento de personagens
tais como o Super-homem, Batman, Mulher Maravilha, Capitão América
e os heróis da Marvel de 1960 poderão não encontrar muitos “factos
novos” nos últimos capítulos, mas é mais importante a sua
contextualização nova, e análise cultural cuidada. Além do mais,
Bending Steel tem uma elegância incomparável, tornando a
leitura desta linguagem escorreita, culta, de argumentação clara
igualmente um prazer.
O livro está dividido em seis
capítulos, respeitando certas divisões cronológicas, que o autor
identifica, seguindo outros historiadores ou até fases mais ou menos
canónicas da história dos Estados Unidos, como momentos distintos
da modernidade (“industrial”, “atómica”, etc.), a qual é
entendida como uma rede complexa de desenvolvimentos tecnológicos e
industriais, crescimento das cidades e subsequente imigração,
transformações a nível económico e político, mudanças culturais
nos papéis sexuais, das etnias, etc.
São os primeiros capítulos, talvez,
os mais “originais”, por o autor recuar na literatura americana,
“atrever-se” a fazer associações directas ou mesmo que oblíquas
pertinentes e produtivas, e não se coibir de procurar uma textura
matizada. Em primeiro lugar, recua-se às primeiras instâncias da
“literatura autóctone norte-americana”, ante-Guerra Civil, e
depois da Revolução, num país que, pela primeira vez, tem de se
debater com a modernidade sozinho. Os livros de James Fenimore
Cooper, e sobretudo a personagem Natty Bumppo (que os leitores
conhecerão d'O último dos moicanos (curiosamente, um dos seus apodos é "Hawkeye"), serviriam a formação
de um “carácter nacional”, asseverando privilégios de classe,
etnia, sexo, e fomentando a ideia dinâmica da competição. Porém,
com a continuação do século XIX, surgiriam contra-modelos a essa
masculinidade triunfante: os heróis “ineficazes” (palavras de
Regalado) de Edgar Allan Poe e do Gótico Americano, mas também os
heróis das classes trabalhadoras das dime novels. Este é
desde logo uma dimensão importantíssima no estudo de Regalado. Ele
não se limita simplesmente a ver continuidades nas características
que superficialmente se podem pensar definir os super-heróis – uma
visão conservadora, individualista e violenta da sociedade americana
-, mas procura ver que tipo de negociações, tensões e diferenças
existiam entre os protagonistas heróicos das ficções de cada
período, para apresentar uma ideia mais moldada e diversa desse
mesmo conceito.
O segundo capítulo situa-se no período
pós-Guerra Civil e início do século XX, na profunda transformação
industrial do país, e no desenfreado processo de tecnologização,
contra o qual o escapismo das novelas de Tarzan e
de John Carter, de Burroughs, serviria de paliativo. O
exemplo contrastante neste período são as personagens aterrorizadas
de Lovecraft, mas se Randolph Carter não parece ter nada a ver com
Tarzan, ambos pertencem à mesma estirpe de privilegiados
anglo-saxónicos, brancos, da classe média americana, que procuram
proteger-se da vida confusa e mesclada das cidades (sobretudo em
termos de etnias), e cujo confrontos com o “Outro” são sempre
momentos que permitem a comparação mas a assunção da
superioridade da sua própria cultura. Aliás, o combate contra “as
ameaças étnicas desreguladas e grotescas” (76-77) levadas a cabo
por personagens como Doc Savage e The Shadow não eram menos
peculiares nos casos daqueles outros escritores mais conhecidos. Os
comentários de Lovecraft sobre as “raças” (os Portugueses
encontram-se lá) são desprezíveis, mas o mais importante,
parece-nos, e a Regalado também, não é tanto criar acusações de
racismo que nos impeçam de reler as obras mesmo à luz dessas
escolhas problemáticas, mas antes entender como é que esses
posicionamentos sociais – já na sua época, e antes, abertos a
contra-argumentos e discussões éticas - informariam as ficções
enquanto resposta ao que se entenderia como “ameaça”, viesse ela
de fora, de dentro, ou fosse mesmo confrontada “lá”.
Estes modelos, em alguns casos, foram
influências directas, até mesmo explícitas, sobre os criadores de
banda desenhada de super-heróis. Noutros, estabeleceram um cadinho
cultural no qual a emergência daquelas figuras teria necessariamente
de criar respostas: de confirmação ou confronto, dependerá. Por
exemplo, um dos primeiros traços contrastantes das personagens dos
super-heróis é a maneira como passam a viver nas cidades e com elas
numa relação de simbiose quase absoluta, ao contrário de Tarzan,
os dois Carter, Bumppo, etc., que “fugiam” precisamente dos
espaços urbanos para encontrarem na natureza selvagem o palco da sua
afirmação individual. Um outro, apesar das figuras dos super-heróis
parecer sublinhar papéis de individualismo máximo, é a maneira
como passam a informar uma ideia de sociedade em geral, em que cada
papel tem o seu peso e importância; como escreve Regalado, “a
ficção de super-heróis por vezes influía as sensibilidades do
'New Deal' de um estado activista que providenciava redes de
segurança para americanos a passar dificuldades. Através dos seus
actos altruístas, estas personagens acentuavam o valor do
auto-sacrifício em prol da comunidade alargada” (9).
O terceiro capítulo dedica-se à
origem do Super-homem em 1938, passando, claro está, pelas
experiências imediatamente anteriores dos seus autores, em formas de
fanzines e contos curtos. O quarto introduz o Batman, o Capitão
América e a Mulher Maravilha, cada qual com as suas especificidades
(nacionalismo, belicismo, cultura carnavalesca, questões de papéis
sexuais, etc.). A partir desta parte, todos os outros capítulos
trabalham em torno de um punhado de personagens específicas,
empregando-as como modelos centrais das discussões eleitas pelo
autor. Se bem que ele cite outras personagens, em cada capítulo, a
escolha de não se dispersar em listas infindas mas antes em exemplos
concretos e bem analisados é, sem dúvida, a mais acertada. Como
dissemos, aqui deparamo-nos com dimensões mais conhecidas, mas é o
foco e condução dos argumentos a mais interessante, como por
exemplo, a cuidada atenção para com a maneira como a personalidade
do primeiríssimo Super-homem (nas mãos de Siegel e Shuster) define
um campo mais alargado daqueles que podem contar como “americanos”,
expandindo os papéis étnicos suportados por tal descritivo, ou como
a figura de Batman é estudada da perspectiva carnavalesca: nem
sempre o cavaleiro das trevas foi assim tão “sério”, mesmo nos
seus primeiros episódios, escritos por Bill Finger. O autor nunca,
porém, cai em descrições que absolutizem as “personalidades”
destas personagens. Se o Super-homem parece nascer da cultura do New
Deal, e ter um posicionamento quase anti-capitalista nos seus ataques
a políticos, homens de negócios ou problemas que levam à opressão
dos mais desfavorecidos, a verdade é que o aparente prazer na
destruição não é propriamente uma mensagem pró-proletária,
sindicalista ou revolucionária.
O quinto capítulo debate-se com a
cruzada anti-comic book dos anos 1950 e o declínio das
personagens de super-heróis logo após a 2ª Grande Guerra. Todavia,
é precisamente por esses “ataques”, que o autor estuda de ambos
os lados da barricada, de uma forma inteligente (Werther, muitas
vezes mostrado como um cientista louco de pacotilha, era uma pessoa
com uma visão progressiva da sociedade, anti-racista – estamos a
falar dos Estados Unidos antes dos Direitos Civis dos 1960s -,
preocupado com a educação dos mais novos, mas depois abusaria de
certas leituras e interpretações dos seus estudos, já para não
falar de uma posição de determinismo), que emergiu o movimento de
fãs organizados em clubes, fanzines e outras iniciativas, que
prepararia o seu ressurgimento e refundição. Essa verificar-se-á,
como se sabe, e sobretudo, na Marvel de Stan Lee, Jack Kirby e os
outros autores dessa casa. Se se poderá indicar que a origem da
“Idade de prata” se encontra em gestos anteriores, também eles
informados por uma certa euforia tecnológica e uma boa vontade para
com o futuro fora da Guerra Fria, são os heróis dessa casa em
particular aqueles que melhor espelham um certo posicionamento da
contra-cultura, da plasticidade dos papéis, da vontade dos jovens em
participar activamente na sociedade, e sobretudo, a palavra-chave, a
alienação (o que não é paradoxal em relação àquela
participação). Regalado mostra com pormenor as formas subversivas
com que essas personagens (Homem-Aranha, o Quarteto Fantástico, o
Hulk, etc.) se teciam, mesmo que, mais tarde, as pressões do mercado
e da própria Marvel enquanto companhia, tenham “recuperado”
essas figuras em usos mais convencionais ou domesticados.
Intitulando-se “From Renaissance to
the Dark Age”, não admira que este último capítulo faça um arco
repentino entre esses primeiros gestos da “nova Marvel” com as
desconstruções que surgiriam nos anos 1980. Se Regalado analisa,
como ponto de passagem, as figuras do Pantera Negra como respondendo
à nova situação racial nos Estados Unidos e no trabalho de O'Neill
e Adams a lidar com a era pós-Vietname (na qual a “erosão de um
ethos progessivo” levaria a “um carácter decididamente
pós-modernista”, 206), a segunda parte de leão do capítulo
aborda os inevitáveis Watchmen e The Dark Knight Returns.
Moore “emprega o género numa dissecação pós-moderna de si mesmo
para revelar as dinâmicas sociais, culturais e políticas que
subjazem na ficção de super-heróis” (212), colocando essas
mesmas personagens (ou melhor, as suas “funções” literárias,
sociais e culturais) em questão. Miller, por seu lado, mas todos os
seus seguidores, inverteriam o papel das personagens: estas “haviam
evoluído de indivíduos afirmativos no contexto da comunidade para a
celebração de indivíduos (e subculturas) atomizados ao mesmo tempo
que rejeitam cinicamente a ideia de uma comunidade nacional mais
alargada” (220).
Quer na introdução quer na conclusão,
o autor menciona o papel preponderante que estas figuras têm hoje na
cultura popular, sobretudo graças ao cinema (um tema que é abordado
por outro livro, Comic Book Film Adaptation, de Liam Burke,
que esperamos ler; ainda que não seja exlcusivamente sobre
super-heróis, naturalmente aborda esse género de forma acentuada).
De certa forma, isto não é por ele estudado, dizemo-lo nós, por
vezes essa popularidade é feita mesmo em distinção da banda
desenhada, isto é, não é necessário lê-la, gostar dela,
conhecê-la, para ser fruída e é apenas uma minoria de espectadores
que serão “fãs informados”. Regalado fala mesmo de uma
hegemonia, até por mencionar as aquisições milionárias das
propriedades destas personagens por aglomerados e multinacionais de
media. O autor escreve, “Se
esta [situação] compromete ou não a sua [dos super-heróis]
capacidade em servir de veículos de sentimentos anti-modernos ou não
é uma questão em aberto, e precisaria de maior investigação”.
Que o autor suspende no seu volume, deixando a desenvolvimentos
futuros e escapando ao alcance da disciplina da história. No
entanto, em brevíssimos apontamentos sobre títulos em particular,
como Truth: Red, White & Black,
de Robert Morales e Kyle Baker, o run
do Black Panther por
Christopher Priest, e uma história singular de Richard Corben com o
Batman (“Monster Maker”, da série Batman: Black & White) – cada qual
debatando-se com as origens dessas personagens, os seus papéis na
sociedade em que se inscrevem ou a textura social que os viu emergir
- o autor consegue revelar que desenvolvimentos ele vê em curso na
contemporaneidade, sobretudo a forma como “desafiam o público da
banda desenhada a considerarem as verdades estétias, culturais e
históricas que sustentam o género da ficção de super-heróis e,
por extensão, a cultura em geral” (225). Os aspectos da
diversidade de representação de personagens femininas,
homossexuais, de origens étnicas que não anglo-saxónicas, etc.,
acentuam “o potencial de alterar o lineamento das identidades
heróicas (e por isso nacionais) da mesma forma que o Super-homem de
Siegel e Shuster fez nos anos 1930” (idem).
Estas são figuras fascinantes, e há
dezenas, se não mais, de tentativas em transplantar o conceito para
outros lugares (França, Inglaterra, Brasil, Portugal, países
árabes, africanos, Índia, Japão), quer de forma satírica quer
mesmo de forma mais séria, mas não nos parece que tenham alguma vez
medrado de forma autónoma e suficiente. Se todo e qualquer outro
género tem uma vida rica seja onde for, o género dos super-heróis
manteve quase exclusivamente norte-americano, confirmando que se
trata menos de um elemento narrativo, um topos, do que todo um
complexo cultural. Perguntamo-nos se haveria aqui pasto para analisar
a relação destas figuras com o “Excepcionalismo Americano”.
Seja como for, parte dessa força e pertinência cultural está desde
já estudada por Bending Steel.
Nota final: agradecimentos à editora,
pela oferta do livro.
2 comentários:
Tens o texto repetido no post, Pedro. Que gostei bastante de ler, diga-se.
Que estranho... É o que dá saltar de computadores. Obrigado, já está consertado.
Pedro
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