22 de novembro de 2024

Sexopatia. Marcos Trindade (Chili Com Carne)

Este novo livro do autor repete a concentração em um objecto pequeno que havíamos verificado em
Os Acrobatas, que entendemos na nossa leitura como um retrato carnavalesco de uma certa sociedade política portuguesa. Sexopatia, não deixando de poder providenciar umas achegas à cultura local, todavia atinge um contorno mais alargado, quem sabe próximo do universal. Num momento em que, positivamente, se fala de forma mais franca, aberta e democrática de saúde mental, de expressões da sexualidade, de identidade, de liberdade no amor, de debatermos formas saudáveis de repensar as relações entre as pessoas, inclusive sexuais, mas igualmente sob a esteira de novas justiças e reequilíbrios sociais e políticos em relação às mesmas realidades, não convém deitar fora o bebé com a água do banho. A pulsão sexual é, ainda, selvagem, animal, conspurcada, absurda, porca, estúpida, má, egoísta, bruta, franca, e, por isso, um dos grandes bastiões da verdadeira e ulterior liberdade humana. 

2 de julho de 2024

Bandas Desenhadas: "Histórias de Bondade", de Yorgos Lanthimos.



Uma leitura breve de Histórias de Bondade, de Y. Lanthimos, para o Bandas Desenhadas.

texto aqui.

1 de julho de 2024

LERBD: 20 anos.


Por incrível que pareça, já passaram 20 anos desde que abri este espaço dedicado à banda desenhada. Como já escrevia em alguns títulos, pequenas resenhas com o espaço que havia (na Mondo Bizarre, mas já antes na flirtUrbe, e outras coisas), e na Quadrado foram-me sendo abertas as portas a estender-me em objectos mais ensaísticos, o blog começou como um bom repositório desses textos, logo plataforma de novas reflexões e, ao longo dos anos, palco onde fui experimentando moldar a aprendizagem do discurso crítico, transformado à medida das minhas próprias leituras, aprendizagens e maturação. E não foi apenas a banda desenhada, pois em rigor falei de ilustração, projectos literários que mesclassem imagens, animação, cinema, objectos poético-icónicos, colecções de desenho, e outras realidades...


Houve muitas fases, distintas, diria, e momentos diversos de vontades, energias, capacidades e possibilidades. E que também se relacionavam com outras actividades que estivessem associadas: organização de exposições, de documentários, escrita de obras maiores, a criação autoral, o ensino, etc. Não se pode negar a associação de uma coisa a outra. Quando iniciei a minha escrita sobre banda desenhada, nos anos 1990, era de uma maneira muito tímida. No início dos anos 2000, foi sendo cada vez mais agressiva e fincada, abrindo portas a outras colaborações, alianças e certezas. Numa "cena" tão pequena como a nossa, não foi difícil a integração, circulação mas também tomada de posições mas que sempre foram livres e transversais (não me esquecerei quando o Geraldes Lino ficou muito surpreendido por me ver a colaborar com o Festival da Amadora, achando que eu era um "alternativo do Salão Lisboa", com o qual, na verdade, nunca colaborei).


Não esconderei que tinha a esperança, assim como presunção e água benta, de ir contribuindo para uma nova maneira de pensar e reflectir e escrever sobre a banda desenhada (na esteira de um Domingos Isabelinho e muitas referências internacionais), mas passadas duas décadas, não me parece que tenha havido uma transformação profunda da "crítica", palavra sobre a qual continuo a ser egoísta (não é o mesmo que "opinião", "resenha", "notas", "leituras", etc.). Continua a haver falta de espaço de mais profundas e balizadas considerações culturais da banda desenhada, não foi conquistado lugar suficiente em meios de comunicação mais "tradicionais" (jornais, televisão, mesmo a rádio, apesar dos esforços). O campo continua preocupado ainda mais em divulgação, senão somente repetição de notícias, mas há excepções, claro, capazes de furar a doxa e o desejo claro da entrada em pequenos enclaves de amizade e repetições, e menos em tomadas de posicionamento verdadeiramente crítico, em contextos mais alargados. 


Gostaria de pensar organizar algo mais bombástico, mas fiquemos com algo simples. Na próxima Segunda-Feira, ao fim do dia, na FBAUL, no seio dos eventos da COST, haverá uma pequena mesa-redonda comigo, os críticos Sara Figueiredo Costa e José Marmeleira (a primeira escrevendo sobretudo sobre literatura, o segundo sobre arte e música, mas ambos igualmente dedicando-se mal podem, e de forma séria, informada e alargada, sobre banda desenhada), assim como a Ana Matilde Sousa/Hetamoé e Hugo Almeida/Mao, ambos usando os chapéus, cosidos uns nos outros, de investigadores académicos, organizadores de eventos, editores e artistas de banda desenhada. O tema lançado é o da tarefa da crítica, usando para título os termos empregues pelo crítico literário J. Hillis Miller, num texto muito influente, demonstrando a abertura que essa tarefa permite na leitura de um determinado texto.


Estão convidados!



17 de junho de 2024

O homem que sonhou o impossível. Mário Freitas e Lucas Pereira (Kingpin)


Este livro, apesar de curto, convida o leitor a ler para além dele, uma vez que mexe com todo um imaginário caro ao mesmo, já acólito desse mundo, pelo que é muito difícil lê-lo de forma estritamente textual, atendo-nos aos seus elementos presentes. Apesar da roupagem fictícia, ele cria elos imediatos com o mundo real, e as respostas a esses estímulos expandem a eficácia do título. Aparentemente, tratar-se-á da história de um velho artista de banda desenhada, chamado Jack King, vivendo num lar de terceira idade, onde outros colegas de profissão também passam os dias. Mas um mistério oculta-se na biblioteca do lar, que despertará um último e grande conflito, o qual resolverá uma crise de décadas e trará a ideia, talvez, de uma possível redenção.

7 de junho de 2024

Larva, Babel de uma noite de São João. Julían Ríos (Barco Bêbado)

Saiu a lume, pela Barco Bêbado, a versão portuguesa do “romance” (usemos a palavra e aspas, para já) de Julián Ríos, lançado originalmente em Espanha em 1983, Larva. Babel de uma noite de São João. A um só tempo figura fulcral de uma certa reinvenção pós-moderna das letras espanholas e marginal do seu status quo, este é um daqueles livros que reformula estrutural e ontologicamente a própria noção de género, senão de literatura.

A literatura nem sempre é literatura. A maior parte das vezes apresenta-se como um veículo que se pretende disfarçar a si mesmo enquanto transparente, meio para um mundo diegético que se forma algures nas nossas mentes de leitores e nos faz crer que tão-somente o observamos através de uma janela, continuando o programa de realismo de Alberti. Talvez mesmo aquela transparência de que Walter Benjamin fala [Durchsichtigkeit], e que se torna obsessiva ao longo do século XX, e a sua noção de avanço tecnológico, regime da razão e progresso, ocultando a barbárie que é o seu preço. Famosamente, no seu ensaio “O contador de histórias” (“Der Erzähler”), Benjamin separa o acto (oral) de contar histórias do da escrita de um romance, colocando este não apenas dependente do objecto-livro e da história da imprensa, mas desligando-o também da experiência tornada comum, ou “vivência” (Erlebnis), nascendo do indivíduo isolado, sem recurso à sapiência. Escreve o ensaísta o seguinte:


Escrever um romance significa levar o incomensurável ao extremo, na representação da vida humana. No seio da completude da vida, e através da representação desta mesma completude, o romance oferece as provas da perplexidade profunda dos vivos.” (mais)

5 de junho de 2024

Pessoa e o Cinema - Ciclo e debate.




Conforme notícia anterior sobre a publicação da última revista Pessoa Plural", eis o LINK onde podem encontrar mais informações e como aceder o visionamento de vários filmes associados à figura de Fernando Pessoa, inclusive os projectos de animação que depois debaterei com Marcelo Mello no dia 12 de Junho, a partir das 19h de Portugal.


3 de junho de 2024

"A pluralidade de Pessoa em filmes de animação e histórias em quadrinhos" (artigo académico)

É com imenso prazer que partilho um artigo de natureza académica sobre banda desenhada, animação e Fernando Pessoa que vi publicado na prestigiada revista Pessoa Plural, no. 25, 2024, intitulado "A pluralidade de Pessoa em filmes de animação e histórias em quadrinhos".


Faço sobre análises formais de trabalhos de bandas desenhadas e filmes de animação, curtas e longas, a cor e preto e branco, adaptando e baralhando, pelos autores brasileiros Eloar Guazzelli, Otto Guerra, e Laerte Coutinho, o português radicado em França José-Manuel Barata Xavier e o francês Thibault Chollet, mas uma última sessão mergulha igualmente na minha própria prática, discutindo a adaptação de Mensagem, que fiz com a Susa Monteiro.


Ficam os agradecimentos aos editores, sobretudo Marcelo Mello e Jerónimo Pizarro, que me foram ajudando a moldar as ideias e o texto. E ainda ao Dário Duarte, pela pesca de uma referência certeira.


Há livre acesso ao artigo sob a forma de pdf, aqui.


No dia 12 de Junho, pelas nossas 19h às 21h, estarei numa sessão de visionamento de alguns destes filmes, seguidos de comentários e discussões. Mais informações sobre isso atempadamente.

31 de maio de 2024

Boa noite, Punpun; vol 1. Inio Asano (Devir)

Já se passaram quase 20 anos desde a publicação do primeiro volume desta série, no Japão. A sua tradução para inglês demoraria cerca de 10 anos, mas a recepção foi célere, impactante e significativa em vários países, tornando Asano num nome importante na produção de banda desenhada japonesa contemporânea dirigida a um público mais adulto, a sua recepção crítica e influência, e abrindo caminho a uma maior atenção a outros dos seus títulos. Há quase dez anos, discutiu-se neste espaço A Girl on the Shore, onde assegurávamos ser a voz deste autor a de uma representação da “melancolia urbana e da sufocação emocional da juventude japonesa (ou global)” e falámos brevemente de Punpun (que havíamos lido parcialmente em inglês e francês, mas nunca na totalidade) como um “lentíssimo mas profundo Bildungsroman anticlimático”. Ora, agora finalmente os leitores portugueses poderão atestar a correcção destas palavras, ou sua falha, ao lerem aquela que parece ser ainda, se não a magnus opus, pelo menos a obra de maior impacto mediático do autor. Esperemos que o seu sucesso contínuo, juntamente com outros projectos da mesma editora, com Taiyo Matsumoto, Shiegeru Mizuki, e outros, possa garantir a contínua aposta em outros géneros e tipologias da mangá que não a shonen (campo no qual a excelência é inegável, diga-se de passagem, simplesmente não estará nos nossos interesses pessoais principais). (Mais)

28 de maio de 2024

Les Derniers Jours d'un immortel. Fabien Vehlmann e Gwen De Bonneval (Futuropolis)


Nota inicial: este texto foi escrito para o terceiro programa 3 Graus de carequice, em que discutimos o “não-humano”. Aproveitei, por sua vez, alguns apontamentos que havia tomado para uma conferência e, mais tarde, paper. E mais, sobre um argumentista que tenho tentado seguir de perto e que aprecio, Fabien Vehlmann, de cujo Le Dieu-Fauve falei há um par de dias, neste espaço. É nesse sentido que recupero estas notas, com algumas alterações para legibilidade e maior consistência. (Mais)

26 de maio de 2024

Corto Maltese. A Rainha da Babilónia. Martin Quenehen e Bastien Vivès (Arte de autor)

Este segundo volume do duo de autores empregando à sua maneira a famosa personagem de Hugo Pratt dá continuidade ao contexto do início do século XXI. Os dois já haviam trabalhado juntos em Quatorze juillet, uma espécie de narrativa de alta octanagem e radiografia de uma França contemporânea pós-Macron, atenta, se não paranóica, com o facto de se ser alvo de actos de terrorismo, aparentemente internacional mas cozinhados no interior do país. Controverso, difícil, necessário, e com os desvios necessários para se tornar um thriller. Talvez tenham sido esses ingredientes claramente presentes que convenceram a detentora dos direitos a não apenas dar continuidade à personagem após a morte do criador original como a lançarem uma série “alternativa”. (Mais) 

21 de maio de 2024

Le Dieu-Fauve. Fabien Vehlmann e Roger (Dargaud)

O que é o Dilúvio? De uma forma corriqueira, é um avanço repentino e tumultuoso de águas sobre superfícies que usualmente não lhe estão subjugadas. É também um mito, uma história, que na nossa cultura tem presença no Épico de Gilgamesh e, mais tarde, nas narrativas que seriam agregadas nos textos judaicos e cristãos, mas tem algumas presenças semelhantes em outras culturas não-aparentadas, como do povo maia ou os ojibwe. Mas pode ser visto também como uma maré de algo que nos subleva, que nos altera, de forma irresistível, profunda, transformadora. Algo que até poderíamos imaginar não possuir e, nesse repente, se revela e nos transforma. Neste livro, há um dilúvio literal: ondas que engolem as terras e tudo destroem, mudando ou derrubando a ordem até ali vigente. Mas há outra: é também a vaga que vai e vem, súbita e sangrenta, do Sem-Voz, tornado a arma demente de morte chamada de “Deus-Selvagem”, empregue em combates de gladiadores, de significado religioso e ritual. (Mais)

17 de maio de 2024

Sílvia. Pepedelrey (auto-edição)

Pepedelrey tem criado toda uma série de pequenas publicações através do seu selo editorial, na qual vai explorando, da sua forma livre consabida, pequenos relatos onde o humor pode viver lado a lado com uma crítica mordaz da sociedade actual, as diatribes de bicho isolado se unem à atenta participação, a capacidade de vislumbrar a vida dos outros se confunde com a irritação da imbecilidade generalizada. Sílvia é, talvez, uma pequena excepção, como gesto de estranha empatia.


Na história da banda desenhada, podemos encontrar várias instâncias de peças que, com humor, criam desvios em termos da representabilidade dramática mais usual, escolhendo ângulos, proximidades ou vistas “pouco naturais” - closes-ups extremos, planos em zénite ou nadir, perspectivas de dentro da cabeça das personagens, focalições zero, etc. A título de exemplo, o autor holandês Jan Linse tem uma peça publicada por volta de 1870, na Humoritisch Album, intitulada “Um romance em quarenta pernas”, de apenas 8 vinhetas, mostrando, no fundo, uma sequência em torno de um romance “assolapado” entre um cavalheiro e uma dama e, depois, os pais desta. Este tipo de “limitações” auto-impostas conduz a exercícios oubapianos, ou outros, curiosos, que servem um propósito de humor, de novas perspectivas, e ao mesmo tempo de revelação da linguagem oculta, física, emocional ou outra, das suas personagens. Numa antologia de 1999, Paroles de Taulards (“Palavras de reclusos”), reunindo testemunhos e vidas de reclusos prisionais, Edmond Baudoin também deu corpo a um dos testemunhos sem jamais mostrar-lhe o rosto, como se se pretendesse, a um só tempo, demonstrar a perda de humanidade ao se viver numa prisão mas ao mesmo tempo defender a última possibilidade da dignidade humana que lhe restaria. (mais) 

7 de maio de 2024

Três publicações. André Coelho (ΧΘΩΝ)

Na sua prolífera produção de projectos de banda desenhada, de ilustração e musicais, André Coelho cria como que metástases desses mesmos gestos e que, com a sua alquimia e ciência (difícil de destrinçar uma da outra), expugna, mantém vivas e cultiva para que se desenvolvam em novos organismos autónomos, mas que transportam a mesma contaminação. Se bem que uma grande parte do público dedique maior atenção a objectos maiores do ponto de vista comercial, genérico e de circulação capitalista - “novelas gráficas” e “álbuns” -, seguirmos os pequenos passos expressivos levam à manutenção dos modos como um artista vai pesquisando, burilando, interrogando, esses tais gestos contínuos. 

Estas três publicações saíram, desde final de 2023 até há recente, pelo próprio selo do artista, ΧΘΩΝ, ou “Khthon”, que lhe serve de plataforma de auto-edição editorial e musical, sendo neste último caso acessíveis via Bandcamp as produções que mesclam música electrónica, noise, soundwalks, colagem, found footage, ambientes negros, criando paisagens sonoras muito próximas, precisamente, do que o autor tenta capturar através dos seus desenhos e colaborações: um retrato das ruínas do futuro que fazem sentir a sua sombra já hoje. (Mais) 

5 de maio de 2024

Kogarashi Monjirou, O prenúncio do Inverno e A lenda de Musashi . Goseki Kojima e Mamoru Sasaki, e Saho Sasazawa (Pipoca & Nanquim)


É um prazer incrível termos hoje acesso a muito mais frentes de oferta da banda desenhada global. Seria interessante fazer uma arqueologia das estratégias que os leitores faziam para procurar textos internacionais ao longo das décadas, e tentar compreender em que medida essas mesmas práticas informaram a formação do gosto e conhecimento. Como pertencente à geração que apenas ganhou autonomia dessa procura na década de 1980, quero acreditar que o maior esforço terá criado instrumentos de atenção distintos daqueles que a cultura pós-web permitiu, mas ao mesmo tempo quero acreditar que é motivo de celebração a proliferação de agentes editoriais e a circulação mais oleada do comércio global, mesmo com os aspectos menos felizes. No que diz respeito à mangá, é magnífico que possamos virar-nos para editoras brasileiras que nos dão acesso a livros que, de outro modo, não estariam disponíveis em outro idioma “acessível” (partindo da ideia que o japonês não é comum entre a maior parte dos leitores portugueses). Estes dois volumes, da mesma colecção de que os livros de Hiroshi Hirata de que falámos (e de que, entretanto, um volume foi publicado em Portugal pel'A Seita), apresentam-nos um dos maiores mestres da banda desenhada de samurais, Goseki Kojima.

2 de maio de 2024

Gato Comum. Joana Estrela (Planeta Tangerina)

Incorrendo no perigo da repetição, voltamos à carga com um problema contemporâneo da oferta da banda desenhada, quase global, mas definitivamente em Portugal. Na voragem de provarmos que a “banda desenhada não é só para crianças”, a viragem para a sua dita “maturação” implicou uma drástica transformação da oferta, esforços editoriais, recepção mediática e discussão para toda uma produção de banda desenhada que excluía, precisamente, as crianças. Mesmo que haja oferta, há pouca discussão (veja-se o silêncio generalizado sobre as obras de Raina Telgemeier, ou a recepção “chocha” e deslocada dos livros de temática YA ou lgbt-friendly, quase sempre pautadas por ligeiros vislumbres de posicionamentos heteronormativos e tutelares). Mesmo os festivais “dispensam” essas dimensões. Por isso, acaba por ser um travo distinto quando nos deparamos com gestos dedicados a textos mais abrangentes em termos de públicos etários mais jovens e, sobretudo, quando feito com uma qualidade significativa, e sem concessões. Pouco surpreende, portanto, que seja a Planeta Tangerina, cooperativa de uma mão-cheia de autores que têm pugnado por uma transformação profunda na seriedade com que levam as relações entre texto e imagem em livros para a infância e juventude, que nos chega um novo livro de Joana Estrela.

1 de maio de 2024

A Estrada. Manu Larcenet (Ala dos Livros)

Muitas vezes, e já o repetimos bastas vezes, a consideração das adaptações atém-se meramente ao verter da fabula, por oposição à sjuzhet, na terminologia formalista, para um novo meio, isto é, tão-somente os “acontecimentos”, que muitas vezes também se chamam “estória”, e não as estratégias discursivas, formais, e poéticas do meio original. Isso leva àquele exercício curioso de contrastar ponto por ponto “o que acontece” no texto original com o que surge no novo texto, colocando todas as outras possíveis dimensões completamente de lado. E, as mais das vezes, leva a discussões passionais (não sem mérito próprio, diga-se) sobre a questão da “fidelidade” em relação ao texto original (sigo aqui, como em tantas ocasiões, Jan Baetens). Vejam-se os exemplos consabidos do Dune de Frank Herbert/David Lynch ou The Shining de Stephen King/Stanley Kubrick, no cinema, ou À la recherche du temps perdu de Marcel Proust/Stéphane Heuet na banda desenhada. Devemos ter sempre em conta as possibilidades de pesquisa específica de um determinado meio, nas suas capacidades materiais, expressivas e estéticas, que possam atingir a criação autónoma. E, por vezes, pode haver um tal grau de autonomia que se fundam textos quase-totalmente independentes do ponto de partida, como no caso do nosso território o exemplo superior de Le Chatêau, de Olivier Deprez (après Kafka). Todavia, e dependendo dos contextos, a fidelidade não tem necessariamente de ser vista como um “problema”, “obstáculo” ou “impedimento” a essa mesma criatividade, como não poderíamos deixar de acreditar, tendo em conta o trabalho criativo em curso na colecção da Levoir dos Clássicos da Literatura Portuguesa em Banda Desenhada, e outros trabalhos menores.

21 de abril de 2024


Todas as coisas têm o seu momento, todos os momentos devem ser ocupados pelas suas coisas.

O 3 Graus de Carequice chegou ao fim. It's ceased to exist. Passed on. Is no more. It is an ex-3 Graus de Carequice.

Não se preocupem. Estamos bem. Foi, aliás, regado a cerveja que chegámos a esta conclusão.

Este programa nasceu da força das circunstâncias, como de tantas outras oportunidades, do “desconvívio” provocado pela pandemia, e começado com entusiasmo, planos e preparação. Mas a vida continua, e quando a vida continuou e continuou e se expandiu, íamos tendo mais dificulades em manter um ritmo de preparação, conversas prévias e “scripts” para os programas. E como queremos fazer sempre o melhor e servir o público que tínhamos – nada displicente, ainda que estejamos conscientes do que isto é – percebemos que não estávamos a respeitar nem os nossos propósitos nem essas mesmas pessoas.

Estamos, em primeiro lugar, muito contentes pelo que fizemos até agora. A nossa amizade mútua e gosto pela banda desenhada e trocas de cromos não termina, simplesmente não partilharemos as conversas nem as agendaremos para um podcast. E cada um de nós manterá as suas relações com o mundo da banda desenhada a solo, lendo, escrevendo, editando, criando.

Pode ser que haja notícias. Pode ser que não. O amanhã é depois de hoje, não vale a pena adivinhar. Mas trabalharemos para alguma coisa.

Um abraço a todos os que nos aturaram.

Como bónus, fanart de quem nunca nos ouviu (e ainda bem!).



19 de abril de 2024

Paper Wraps Rock. Francisco Sousa Lobo (Ar.Co)

Serve o presente post para comentar, de forma muito breve, uma pequena publicação que acompanha uma exposição de vários trabalhos de Francisco Sousa Lobo que está a ter lugar na escola Ar.Co, em Xabregas, até 11 de Maio. Esta exposição inclui desenhos originais, xilogravuras e serigrafias, a maior parte dos quais inéditos, alguns associados a projectos de banda desenhada, outros de valência autónoma, e ainda cadernos de trabalho, publicações, matrizes das gravuras, pequeno mural, e outros desdobramentos que merecem a atenção daqueles que desejam conhecer com maior intimidade a lavra deste autor. É, igualmente, uma venda (inclusive prints, posters e tote bags) e, acima de tudo, um pequeno exercício de “retomar ar”. Finalmente, uma pequena publicação, em edição limitada, numerada e assinada, um desdobrável de 8 faces, em serigrafia a duas cores, que contém uma pequena banda desenhada de 4 pranchas, em inglês.

17 de abril de 2024

O ofício dos ossos. Miguel Carneiro (Magma Bruta)

Esta nova publicação do autor vem directamente na esteira dos Ex-votos para o século XXI, para cujo texto remeto, por força desta nova leva de desenhos ser uma variação daqueles temas e, consequentemente, também as nossas palavras se poderem dedicar a variações. Essa irmandade é mais que natural, uma vez que o “fundo” empregue são uma série de pinturas desenvolvidas por Miguel Carneiro entre 2020 e 2023, e que aqui ganham corpo através das alquimias de risografia exploradas pelo estúdio Magma Bruta.

Algumas imagens, e os anexins ou legendas que as acompanham, repetem-se, enquanto outros elementos ou são inéditos ou não haviam encontrando ainda oportunidade de companheirismo nas páginas. Todavia, as variações e recombinações a que se entregam aqui ganham uma nova roupagem, dada as vivíssimas cores com que surgem, brilhantes vivas, eléctricas, quase psicadélicas. Assim, os esqueletos, diabos, funerais, a Morte, aranhas e escorpiões vêm criar novas procissões macabras e humoradas, recordando como face á transitoriedade e ao destino mais certeiro, mais vale um abandono hedonista no sarcasmo. Existem também algumas imagens mostrando bruxas e banquetes, num registo mais solto, de desenho a traço célere, e com uma maior densidade de dramatismo ou narrativa, que podem criar uma espécie de contexto novelesco às outras imagens mais icónicas (os tais ex-votos). Até certo ponto, portanto, poderíamos tentar adivinhar uma espécie de drama familiar, um romance de antanho, de um mundo ruralmente desértico, habitado por avantesmas e o medo do dianho, mas no qual a morte, quando surge, vem bêbada, e há-de enganar-se na sua missão.

11 de abril de 2024

Entrevista em As Leituras do Pedro.


Serve este post para vos indicar a entrevista do Pedro Cleto, a propósito do Sermão, que adaptei com o Bernardo Majer. Aqui.

10 de abril de 2024

Bandas Desenhadas: Lupin III: O Castelo de Cagliostro, de Myazaki


Fui convidado a estrear a nova cópia remasterizada do filme de animação Lupin III: O Castelo de Cagliostro, a primeira longa-metragem realizada e escrita por Hideo Miyazaki, de 1979. O convite foi-me estendido pelo site Bandas Desenhadas, para quem escrevi uma resenha. Podem aceder a ela aqui.

8 de abril de 2024

Mukanda Tiodora. Marcelo D'Salete (Veneta)


O título, como está, poderia ser traduzido para “português contemporâneo”, ou normativo, de “cartas escritas por Tiodora”. Poderia. Mas ao fazê-lo estar-se-ia precisamente a “normalizar” para uma mesmidade que apagaria em larga medida os traços individuais, culturais e, por isso, politicamente significativos, daquilo que o título escolhido por D'Salete quer construir em nós. Dando uso às suas pesquisas e aplicação do fundo linguístico que preside à historicização da identidade de descendência africana no Brasil, o autor recupera e reintensifica o termo bantu “mukanda” que, como se explica no dicionário Kimbundu-Português, de A. de Assis Junior, já empregue em projectos anteriores (Cumbe e AngolaJanga), significa “missiva” ou “carta”. As cartas de Tiodora são o fundo atravessado do qual emerge a narrativa deste livro.

4 de abril de 2024

Buala: El Cielo en la Cabeza. António Altarriba e Sergio García (Normal)


Serve o presente post para indicar a crítica a El Cielo en la Cabeza, último livro escrito por Antonio Altarriba, e que poderão ler no site da Buala, aqui. Agradecimentos à redação da publicação por albergarem o artigo.


19 de março de 2024

3 Graus de Carequice - Episódio 78 - CIÊNCIA


Neste programa, dedicámos algum tempo a debater alguns livros, projectos, textos que empregam a banda desenhada ao serviço da ciência, da sua comunicação, divulgação, ensino, ou debate. Categorias, especificidades, tentámos ser claros, mas é questionável a nossa metodologia, como sempre. Por razões técnicas, o careca Gabriel estancava na imagem, mas não na presença ou ideias.

18 de março de 2024

O Caminho do Oriente. Raul Correia e Eduardo Teixeira Coelho (Libri Impressi)

Mais uma vez, o trabalho de Manuel Caldas merece ser celebrado pela sua incansável dedicação ao restauro (literal) da arte de grandes autores de banda desenhada e (mais metafórico) da memória dessas mesmas obras nos nossos dias. Este post curto servirá apenas para alertar da edição d'O Caminho do Oriente, uma série que foi publicada na revista portuguesa de banda desenhada O Mosquito, um dos títulos mais importantes e de sucesso num tempo áureo, em termos comerciais, na sua primeira série. Surge agora em formato livro, em capa brochada, completa, ainda que num formato menor do que o original, dificultando para alguns leitores míopes (wink, wink) a sua leitura mais fluida. Mais, há aqui uma recepção muito pessoal, dado o trabalho em curso em torno da adaptação de Os Lusíadas para banda desenhada sob a minha responsabilidade. (Mais) 

8 de março de 2024

Fernando Pessoa para todas as Pessoas - "MENSAGEM"


Entrevista no programa de webrádio de Ricardo Belo de Morais​ , Fernando Pessoa para todas as pessoas, com a Susa Monteiro e comigo, a propósito da adaptação da Mensagem ( Levoir​ ). 

5 de março de 2024

Sunny, vols 1 e 2. Taiyo Matsumoto (Devir)

Há um livro bastante influente, da área das Ciências Sociais da Ciência e Tecnologia, de Sherry Turkle, que cunhou uma expressão, ou melhor, um descritivo de um determinado tipo de obectos, a que ela chamou “evocativos”. São estes objectos a que uma pessoa, de um modo quase singular, muito pessoal, mas perfeitamente familiar para quase todos nós, atribui uma tal significância cultural que espoletará respostas emocionais, de memórias ou reflexões particularmente fortes. Um papel, foto, bilhete, cartão que temos sempre na carteira, uma concha ou bugiganga qualquer que temos sempre connosco, um objecto foleiro que dispomos em casa, uma relíquia que estimamos. Seja o que for, esse objecto existe não apenas como âncora de algo do nosso passado, ou que reclamamos para nós, mas que se torna igualmente um veículo das nossas próprias (auto-)narrativas ou de conexões emocionais.

27 de fevereiro de 2024

3 Graus de Carequice - Episódio 78 - ESTANTES


Um programa sugerido por um dos nossos espectadores/ouvintes, falamos, de uma maneira menos controlada, sobre que livros desapareceram da nossa estante por os termos "emprestadado" a alguém, e que papel isso tem no nosso imaginário e forma de nos relacionarmos com as posses terrenas, para mais ditadas pela banda desenhada... Simples, né?

2 de fevereiro de 2024

3 Graus de Carequice - Episódio 77 - VIOLÊNCIA


O cansaço nota-se, mas nós vamos à lide. E a metáfora é lixada, pois sendo o tema a "violência", como conceito, é tão alargado que apetece morder os punhos. Mais uma vez, um slalom de ideias e referências. Por Santiago, à bulha!

29 de janeiro de 2024

Almada no fio do tempo. Carlos Guerreiro, Mariana Matos e Tiago Albuquerque. (Câmara Municipal de Almada)

Este é um objecto ambíguo. Por um lado, é um livro que pretende apresentar-se como um retrato dos cinquenta anos desde que Almada se tornou cidade. É dessa forma que o projecto emerge, do ponto de vista editorial, político e financeiro, no seio dessas mesmas comemorações. Por outro, por graça dos seus autores, a sua matéria tece-se como uma ficção em torno de um par de personagens, e tenta criar uma intriga misteriosa, fantástica até, que se vai intercalando com momentos conhecidos, importantes ou marcantes desses mesmos 50 anos.

De uma forma sucinta, o livro centra-se na vida de um jovem rapaz, Pedro, que nasce em 1973 e vai vivendo em Almada até aos anos 1989, o momento mais avançado na diegese do livro. Dessa forma, imaginamos, estará próximo da vivência empírica do argumentista deste livro, Carlos Guerreiro. Mas Pedro tem um elo com o seu tio Vasco, relojoeiro, que a dado momento da sua vida desapareceu, coincidindo quase com o fecho e desmantelamento do famoso farol de Almada, posteriormente recolocado na ilha Terceira. Esse elo traduz-se através do tropo do “objecto mágico”, no caso, um gnómon, que é mapa, pista e chave do tal “mistério”, e este revela-se ser uma “máquina no tempo”.

28 de janeiro de 2024

Partir a loiça (toda). Luís Barreto (Chili Com Carne)

Começo por indicar que recebi um exemplar deste zine uma vez que fiz parte do júri do concurso “Toma lá 500 paus e faz uma B.D.”, enquanto sócio da Tinta nos Nervos, “bolsa” promovida pela editora, e de que o autor foi o vencedor. Durante o processo, foram esgrimidos argumentos sobre as obras concorrentes, e um dos pontos que compreendi desde logo é que este projecto era a “cara” do catálogo da Chili, ainda que compreenda a diversidade editorial ofertada por esta plataforma (mesmo que alguns agentes mais distraídos insistam que se trata da “mesma coisa”. É falso.).

22 de janeiro de 2024

Crítica a "Pobres Criaturas" (Y. Lanthimos, 2023) no Bandas Desenhadas.com


A convite do Bandas Desenhadas.com, assisti à estreia do filme Pobres Criaturas, de Yorgos Lanthimos, e escrevi um texto longo sobre o filme, o livro e a sua prestação. Podem ler primeiro, que não revalo muito da intriga, mas posso influenciar o juízo de valor. Ou não, o que ainda bem para todos.

Podem aceder directamente aqui.